quinta-feira, maio 24, 2007

Prosa e Cinema

Muitas pessoas, mesmo sem deixar comentários aqui, tem me falado que andam gostando dos textos mais, digamos, poéticos aqui apresentados. Então, pra essas pessoas — elas sabem que estou falando delas — deixo aqui uma prosa curta. Quem gosta de cinema, quem já beijou no escurinho de uma sala assim vai gostar. E lanço um desafio: além do filme “Cinema Paradiso”, outro é citado nesta prosa. Qual? Dica: ganhou Oscar de melhor filme.

O Último Cinema do Centro

Já não havia mais cinemas no centro da cidade como há vinte, trinta anos. Restava apenas um, onde antes era o diretório acadêmico de uma faculdade. Local que na verdade trazia outras lembranças, onde geralmente as pessoas se acotovelavam em torno da bilheteria, tentando entrar, como se aquele lugar fosse uma casa mágica, como se o ambiente ali de dentro fosse levar as pessoas para algo melhor. E foi passando em frente a este endereço, a pé, que ele se lembrou de uma sessão de cinema ocorrida há sabe-se lá quantos anos, em outro cinema da cidade, onde agora, fechado por velhas portas pantográficas de ferro, tornara-se o local ideal para os sacos plásticos descansarem da luta contra o vento e dormirem tranqüilos.

Ele até que tentou lembrar-se qual era o filme, quem era o diretor, a música, a luz em movimento. Mas foi em vão. A lembrança pungente era o abraço daquela mulher em sua cintura. Nem o roçar dos corpos das outras pessoas — que estavam também naquela sessão e se espremiam umas nas outras a espera que a chuva torrencial que desabava lá fora ao menos diminuísse —, foi lembrado. A imagem que lhe vinha na mente de forma mais clara eram os pingos da chuva, que apareciam maiores quando passavam bem próximos da luz da lâmpada de vapor de mercúrio. O vento já havia jogado água por todo o vidro temperado que separava a sala de espera da calçada, que deformava ainda mais as pessoas que corriam molhadas na rua, fugindo da água que despencava furiosa do céu, sem se importar onde caía. Começou a se lembrar que o vento trazia para dentro da sala de espera, por uma pequena fresta aberta, o frio de quase início da madrugada. Começou a se lembrar que aquela seria a última sessão de cinema junto com aquela mulher. Mais uma vez tentou se lembrar o nome do filme. Poderia procurá-lo numa locadora e relembrar com mais intensidade os momentos dentro do escuro do cinema. Mas a memória já não era como antes. Nada era como antes.

O filme que lhe passava na cabeça era uma colagem de recortes do tempo que passou junto com ela. Em fragmentos, como pedaços de celulóide, sua memória começou a se mover. Lembrou da personagem daquele cineasta que volta à sua cidade natal na Itália, para o enterro de seu amigo projecionista — interpretado por Philippe Noiret em Cinema Paradiso — e morto sem vê-lo pela última vez. Quando o cineasta, agora famoso, recebe a “herança” do seu amigo, uma caixa de metal e a abre, lá estão todos os beijos dos filmes de sua infância, cenas de amor extirpadas das fitas por imposição da censura da Igreja local da época. No filme, aquele momento era como se uma porta abrisse na memória do cineasta e toda sua infância e convivência com o amigo surgisse na forma de retalhos de celulóide.

E os pedaços de memória, também na forma de retalhos de cenas de amor, de beijos e abraços apaixonados foram surgindo. Com a lembrança de Cinema Paradiso; da música maravilhosa de Ennio Morricone; das lágrimas despejadas na cena da caixa; dos rostos envelhecidos dos antigos habitantes da pequena cidade italiana. Uma “caixa” repleta de pedacinhos de sua vida, de uma parte dela, se abriu. Começou a se lembrar de seus sonhos, de sua energia inabalável. Foram surgindo na lembrança os momentos de dificuldade e fracassos que tão bem eram superados a dois. A crença — que beirava o fanatismo — de que era capaz de mudar o mundo. A férrea certeza de que aquela mulher seria a última de sua vida. E lembrou também como a perdeu. A cena, quase uma tomada cinematográfica, em plano americano: o sol de final de tarde por trás dos cabelos tornavam imperceptíveis os traços do rosto dela. A cidade se movimentando num pano de fundo nervoso e sem rumo, com as pessoas pedindo licença, ou não, tocando e empurrando em busca de espaço para justificar sua pressa. Não conseguia enxergar nesta cena as feições daquela mulher. Não sabia mais se aquela era a cena real acontecida, que agora lembrava. E nela também não via os traços da boca, dos olhos, das maçãs do rosto. Poderia ser mais uma trapaça de sua memória que lhe retirava uma breve e rara oportunidade de voltar a ver aquele rosto. Não conseguia vislumbrar a face, apenas a dor daquele momento. Uma cena desprovida de música, sem Morricone, sem a maestria dos cineastas de antigamente, sem uma fotografia que enchesse a tela de emoção em forma de luz. Era a cena final do seu filme. Não haveriam os créditos subindo, as luzes da sala se acendendo, as pessoas se movimentando para sair, enxugando os olhos. Uma parte de sua vida nem em luz em movimento se transformou.

A cena ruim e sem poesia ainda está na sua mente, confundiu-se com a visão dos cartazes dos filmes que estavam anunciados e quase sem perceber, um turbilhão de pessoas começa a passar por ele tocando-o, quase empurrando-o para fora do caminho dos que tem pressa. Em poucos instantes as pessoas que estavam naquela sessão de cinema se foram para suas vidas.

Um vento frio de quase início de madrugada já soprava cortando sua face e desalinhando os poucos cabelos finos e trazia, em movimentos de rara beleza, um saco plástico de supermercado, que aos poucos foi procurando um lugar mais calmo, ali, bem próximo à entrada daquele último cinema.