terça-feira, janeiro 29, 2008

Do bardo

“Ser ou não ser eis a questão.

Será mais nobre sofrer na alma

Pedradas e flechadas do destino feroz

Ou pegar em armas contra o mar de angústias

E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;

Só isso. E com o sono – dizem – extinguir

Dores do coração e as mil mazelas naturais”


William Shakespeare, em Hamlet


sábado, janeiro 26, 2008

Prosas curtas sobre separações - 3

Em Dezembro publiquei um texto que faz parte desse grupo de prosas curtas sobre separações, do qual esse agora faz parte. Depois do post vieram me perguntar se é ficção ou se aquilo aconteceu. Disseram que há detalhes demais para não ter acontecido de verdade. Mas é ficção. Mas há coisas ali retiradas de coisas acontecidas. Não necessariamente comigo. Podem ter acontecido comigo. Ou com você que me lê, caro leitor... O bom da ficção é isso. Talvez não aconteceu... Mas pode ter acontecido. Com você, comigo, com o cara que mora em frente, com o personagem de um filme antigo que passa na TV de madrugada. Ou com seu pai.

Neste post, acontece o mesmo. Muita coisa aí pode ter acontecido. Outras poderiam. O limiar do acontecer é tênue demais. Um mínimo desvio e aquilo que poderia ter acontecido fica apenas na imaginação. Na ficção. Ou não.

Não posso tirar meus olhos de você

Enquanto assinava a fatura do cartão de crédito para pagamento de quarenta litros de gasolina e de uma garrafa de água mineral, percebeu que todas as pessoas que estavam próximas ao pátio do posto olhavam curiosas para aquela obra de arte montada sobre quatro pneus. Claro que não era a primeira vez que isso acontecia. Houve casos de crianças que pediam para dar uma voltinha, sob o olhar de adultos morrendo de inveja e se arrependendo de terem crescido e perdido a inocência das crianças. Nestas horas, esta inocência fazia toda a diferença. Guardou o cartão na carteira, pegou as chaves do bolso, tirou uma folha de uma sete copas que havia se jogado sobre a capota preta, entrou na obra de arte e todos lhe olhando. Quando pôs a chave na ignição e a girou, o motor V8 de 365hp roncou grave, maravilhando agora os ouvidos dos donos dos olhos já maravilhados na platéia. Reparou que um adolescente falou algo com muita convicção para alguém que deveria ser seu pai, que concordou com a cabeça, sorrindo. Engatou a ré e começou a se afastar lentamente, quase que para não atrapalhar o deleite das pessoas. Foi quando se aproximou da dupla e pode escutar quando o filho disse ao pai que o carro era tão bonito que não podia tirar os olhos dele. Sentiu que havia poesia naquelas palavras, sentiu-se parte dela e sorriu interiormente, pois também sentia a mesma coisa. Acelerou pelo piso de paralelepípedos e quando já saía do posto, tomando a rodovia, olhou pelo retrovisor externo e todas aquelas pessoas olhavam em sua direção, com rostos quase que extasiados.

Manteve na memória o rosto do tal adolescente e se lembrou que foi naquela idade, com uns quatorze ou quinze anos, que vira pela primeira vez um Chevelle. Era uma época que não existiam carros importados no país e apenas por ser um, já era muita novidade. Mas as formas do carro, o barulho do motor, tudo isso maravilhou aquele adolescente dos anos 70. Naquela época, aquele exemplar já tinha uns três ou quatro anos, mas seu proprietário cuidava dele como uma obra de arte que realmente era, por isso sua aparência de zero quilômetro que aquele adolescente imaginou ser. Só muito tempo depois é que ficou sabendo que aquele era um Chevrolet Chevelle SS 454, ano 1971.

Depois de quase trinta anos, estava ele dirigindo um destes exemplares raros de máquinas que não se fabricam mais. Observou o interior do carro e se lembrou como estava quando o comprou, quase pronto para o ferro velho. O interior fora inteiramente refeito: forrações, bancos, painel. A maioria com equipamentos originais e reformados. Olhou para frente e viu apontando para a faixa preta de asfalto sendo engolida, o capô vermelho com as duas faixas pretas, que se repetiam na traseira. Começou a se concentrar na viagem, pois algum apressadinho num carro de último tipo acabara de lhe ultrapassar de forma perigosa. Mas não conseguia deixar de pensar como o sonho adolescente de possuir um Chevelle o acompanhou e talvez tenha interferido em outros, positiva ou negativamente. Esta viagem era um destes exemplos. Estava sendo realizada exatamente para resgatar um outro sonho quase perdido. Mas pensava no garoto no posto com o pai, em suas palavras, quando se lembrou de uma fita cassete que deveria estar no porta-luvas do carro. Segurou a direção, se inclinou para a direita e, mantendo a vista para a rodovia, vasculhou entre vários objetos em busca da fita. Lá estava ela, solta, sem a caixa que havia se quebrado há muitos anos. Olhou para a etiqueta grudada onde leu: “Janeiro de 1983”. Quem a gravou não havia se importado com os títulos das músicas, muito menos com seus intérpretes, por isso, ele procurava uma música, que por ter marcado tanto sua vida, sabia seu nome. A música havia sido gravada por vários artistas, mas curiosamente, nunca ficara sabendo a intérprete daquela gravação. Colocou-a no toca-fitas e começou a procurar a música. Achou-a facilmente, tantas e tantas vezes que havia feito esta operação vinte anos atrás.

Oh! Pretty baby!... I need you baby!, cantava a plenos pulmões. Pelo jeito que cantava, acabou se lembrando de um filme que o marcou, mas que não se lembrava do nome. Era algo como The deer hunter, com Robert de Niro em mais uma de suas magistrais interpretações, além da cena que tanto o marcou, com a personagem de Christopher Walken metendo uma bala na própria cabeça. O filme tratava de pessoas que tinham uma vida tranqüila, caçadores de finais de semana, que de uma hora para outra se viram metidos numa guerra que não lhes pertenciam e viam suas vidas se perderem nas selvas e pântanos do Vietnã. Neste filme, numa cena ótima, soldados em folga tomavam cerveja e jogavam bilhar e cantavam aos berros — como ele cantava agora — a mesma música sobre uma gravação de Frank Valli. Aquela vez no cinema, não era a primeira que a havia escutado. Era uma canção que fez sucesso nos anos 60, mas ele era apenas um menino então. Como uma música de sua época de infância pôde marcá-lo tanto assim? Tornara-se a música que embalou o caso de amor de sua vida, agora realmente havia se certificado disso. Estava naquela estrada por isso. Não admitia perder um sonho assim, sem lutar. Já tinha concluído que havia dirigido sua vida de uma maneira que agora se arrependia. Conseguiu o Chevelle e toda a epopéia de sua restauração apenas porque utilizou esta tal “maneira” de dirigir sua vida. Havia conseguido muito para um menino encantado por um automóvel, mas absolutamente sem dinheiro para consegui-lo. Mas só pensava agora em retomar um sonho que em nada dependia desta sua “maneira”. A atriz principal do seu filme — cuja trilha sonora urrava dentro do carro —, que há vintes anos lhe acompanhava, já não agüentava mais esta “maneira” de vida e voltara para sua cidade natal, no alto das montanhas.

Desligou o toca-fitas, pensou como iria chegar a ficar de frente para ela, depois de tudo o que havia acontecido, o que iria falar, se tocaria a música para ela se lembrar do tempo em que ela havia gravado a tal fita cassete, escrito aquela etiqueta com aquela data... O que realmente falaria a ela? Como isso era difícil para ele. Talvez dissesse algo como “não posso tirar meus olhos de você”. Não seria nada original, mas era verdade. Mesmo assim, já não tinha tanta certeza da decisão que tomara de viajar. Mas estava quase chegando. As curvas da estrada, serpenteando pelas montanhas mostravam isso. O dia ia se indo, o Sol já se apresentava apenas por seu poder laranja-vermelho a tingir o céu e uma fina fatia que ele observou intermitentemente pelo retrovisor, até desaparecer por completo.

O Chevelle ano 71 rolava imponente pelo asfalto juntando seu vermelho ao laranja do céu unindo-se no horizonte. A noite começava a cair e o que se viam eram apenas as luzes vermelhas das quatro lanternas redondas da traseira do Chevelle.

Música: Can't Take My Eyes Off Of You
Autores: Bob Crewe – Bob Gaudio
Intérprete: Gloria Gaynor (mas há outros: Frank Valli, Lauryn Hill e mais um mundo inteiro de pessoas que adoram essa música)
Filme: The deer hunter
(Ganhador do Oscar de melhor filme de 1978)
Direção: Michael Cimino
História: Michael Cimino, Deric Washburn, Louis Garfinkle, Quinn K. Redeker e Deric Washburn
Atores: Robert De Niro, Christopher Walken, Merryl Streep, John Savage, John Cazale.
Veja ficha técnica no link



terça-feira, janeiro 22, 2008

Rescaldo

Ou é o cisco no olho
Ou o estrepe no dedo
É sempre o aperto no peito
É sempre o sufoco do medo

Ou é o corte no pé
Ou um lábio trincado
É sempre o cerco ao jeito
De se olhar o passado

Ou é o amargo na boca
Ou um espinho na mão
O que sem dolo foi feito

Mas ficou no coração

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Laura

Mãe e Alma

Aura e Filha

A voz que acalma

O chão que se trilha.


No tempo de ver,

Foi a folha e o fruto,

A palavra e o pão.

No tempo de crer,

É a lembrança e o perfume

Que sempre fica na mão.


Mãe é alma

Laura é filha

Da terra que cria

O que chamamos coração.

sábado, janeiro 12, 2008

Depois demora muito para chegar?

Sempre se deixa algo pra depois. Os motivos são vários. Justificáveis ou não. Mas sempre alguma coisa fica pra depois. É a preguiça, é a inércia, é a letargia. É a falta de coragem. Coisas simples, como fazer a barba ou mais complicadas, como mudar o rumo de sua vida. Depois.

Mas... Depois, demora muito pra chegar? Quais são os eventos que farão que “depois” se transforme em “antes”? Depois existirá mais coragem que agora? Depois o Sol estará mais bonito? Depois serei um homem melhor? Por que depois? Há demora mesmo ou é apenas a percepção minúscula que temos do tempo do nosso ponto de vista comparado ao do Universo? Talvez não há como comparar o tempo que demora pra que um novo eclipse aconteça com o tempo de vida de um urso em um zôo. Qual é o tempo a partir do qual um abraço se tornou demorado? Como comparar esse tempo ao tempo de demora para que este abraço aconteça? Depois, ele vai acontecer? O urso no zôo vai viver pra ver um novo eclipse?

Mas sempre se deixam as coisas pra depois. A esperança é que elas se façam por si próprias. É talvez a inércia ou a falta de coragem. Ou outro motivo muito mais nobre. No entanto, a gente sempre se pergunta: O depois demora muito pra chegar?

terça-feira, janeiro 08, 2008

domingo, janeiro 06, 2008

Receita

Já na introdução deste blog eu dizia que falaríamos de tudo. E por que não de culinária? Na tarde da véspera de Natal escrevi algo sobre um tipo de rosca que minha mãe fazia na época. Acabei recebendo comentários de pessoas que também tiveram alguma experiência relacionada a esse tipo de guloseima. E com o auxílio precioso de pessoas assim, acabei reconstruindo a receita das roscas e, numa tarde de domingo como hoje, experimentei fazer algumas delas. Talvez não tenham ficado como aquelas que a Dona Laura fazia. Talvez, não. Com certeza não ficaram. As roscas agora têm um outro gosto. As mãos que sovaram a massa e as enrolaram são um pouco maiores que daquele moleque. As expectativas daquele menino eram bem simples e as roscas e a vida tinham um gosto também simples. As expectativas mudaram. As roscas também.

Rosca de Natal

Ingredientes

Um copo de açúcar cristal

Duas colheres de sopa de fermento de tablete (fermento biológico)

Dois copos tipo “americano” de leite morno

Quatro ovos mais uma gema

Um copo de óleo

Uma pitada de sal

Aproximadamente 1.200g de farinha de trigo

Uvas passas sem sementes

Ameixas pretas sem caroços

Modo de preparo

Numa tigela, junte o açúcar e o fermento, misturando até formar uma pasta quase líquida;

Junte o leite, os quatro ovos, o óleo e o sal. Vá misturando até tudo ficar homogêneo;

Junte aos poucos a farinha de trigo. Usar uma peneira para fazer a farinha se soltar é interessante. Aos poucos, vá amassando sempre, sovando a massa até desgrudar da mão, mas mantendo a maciez;

Retire da massa uma bolinha de aproximadamente uma polegada de diâmetro e coloque-a num copo com água. Quando ela subir à tona, a massa estará no ponto para ser moldada. Deixe a massa na tigela com um pano úmido cobrindo-a;

Com a bolinha na tona, retire nacos da massa e enrole conforme o seu gosto. Tranças triplas, duplas. O design é livre;

Coloque as tranças numa forma pré untada e com farinha de trigo polvilhada, para não grudar. Deixe-as separadas umas das outras, pois elas ainda crescerão;

Umedeça um pedaço de gaze na gema do ovo que sobrou e bezunte a superfície das roscas de forma heterogênea;

Coloque algumas passas e ameixas pretas por entre as partes côncavas formadas pelas tranças;

Deixe-as crescerem mais um pouco e coloque no forno. O tempo para assar vai depender do forno.

Acompanhamento

Para acompanhar, o que você preferir. Um tinto frutado será um bom companheiro. Mas café e manteiga também têm o seu lugar.

terça-feira, janeiro 01, 2008

Janeiro

Era um céu de Janeiro

Era um céu com estrelas

Azul da cor do mar

De noite

Na noite

Que o verde vestiu o luar


Céu de Janeiro

Céu que retorna ao Sol

Carrega as estrelas

Carrega a alma também

Trata com desvelo o sonho

Do encontro

Que ao tempo convém