sábado, março 29, 2008

O advogado, por Marcelo Spini

Temos um amigo advogado. Tem voz de advogado. Tem jeito de advogado. Conheço-o desde os tempos de colegial e meu pai conhecia o pai dele. Eu mesmo tenho algumas histórias que, de certa forma, têm o pai dele dentro delas. Um dia elas podem aparecer por aqui.

Mas o Marcelão resolveu escrever algo sobre um fato ocorrido com este advogado amigo nosso. Era algo pra enviar ao Fantástico, mas acabou ficando guardado em algum HD por aí. O próprio advogado leu o texto, disse que foi assim mesmo que aconteceu e recentemente autorizou-me a publicar o texto neste blog. Quem escreveu ainda não tem seu blog, então, segue o texto escrito por Marcelo Spini.


O ADVOGADO !!!!

Neste breve relato, descreverei um fato ocorrido com um grande advogado da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, distante 550 quilômetros da capital, Belo Horizonte. Por se tratar de um grande advogado que representa várias grandes instituições, não mencionarei os seu nome.

Após ser informado que teria que fazer uma defesa oral de uma grande causa em Belo Horizonte, passou dias lendo o processo para conhecer todos os seus detalhes. No dia da viagem, enquanto aguardava o vôo na sala de embarque, continuava devorando todas as páginas daquele imenso processo, pois tinha total convicção, que sairia vitorioso.

O vôo estava marcado para sete da manhã. Mineiro que é, chegou faltando dez para as seis, tentando não ter nenhum problema no check in. Acomodou-se e mergulhou na leitura. Pensando ter passado alguns minutos, olhou as horas, foi um espanto. 7h20min! Juntou todos os documentos, levantou-se desesperado e foi perguntar sobre o vôo. Recebeu a triste notícia: mesmo estando o Brasil passando por uma crise aérea, aquele bendito (ou maldito) vôo saiu no horário.

Desesperado, disparou um plano “B”. Tinha que conseguir chegar em Belo Horizonte antes do almoço, pois a “coisa” estava marcada para três da tarde. Foi de guichê em guichê para tentar outro vôo e nada. Até que alguém lhe falou sobre um táxi aéreo que também tinha como destino a Belo Horizonte. Ao se aproximar da área de embarque, com a sorte que sempre deve acompanhar um grande advogado, tinha um amigo que também estava indo para lá e poderia lhe ajudar a conseguir uma vaga no vôo. Após ver a possibilidade de embarcar e negociar o preço estava que era só alegria, pois este grande advogado tem um pezinho na Turquia. Embarcou.

A aeronave era pequena e agora com este novo passageiro, estava lotada. Piloto e mais sete passageiros. Como sempre nesses ambientes, apenas uma mulher. O vôo partiu sem problemas aparentes, mas um fato iria fazer com esta viagem fosse marcada de maneira ímpar.

Após alguns minutos de viagem, o Dr. começou a sentir algumas cólicas, que o fez suar frio lembrando da feijoada que havia comido no dia anterior. Num espaço tão pequeno não era possível soltar um punzinho distraído, pois todos iam notar e não teria como culpar ninguém. E aquele advogado continuou ali firme. Cada minuto que passava a situação piorava, cólicas, gases, barulhos estranhos. Enquanto todos riam, ele ficava cada vez mais sério.

Passado mais alguns minutos o piloto informou que estavam chegando ao destino, mas o Dr. já não suportava mais. Após uma rápida explicação da situação perguntou onde era o banheiro. Após algumas risadas foi informado que estava sentando no banheiro. Não havia outra saída. Como retornaria da viagem no mesmo dia, não havia levado outro terno, tinha que resolver a situação ali e agora. Após algumas desculpas desenxabidas, levantou a tampa de seu acento, desabotoou o cinto, abaixou parcialmente as calças, pois no recinto havia uma mulher. Enfim, pôs fim ao seu sofrimento. Neste momento se ouvia apenas o som do motor do avião. A cena era desoladora. No entanto, mesmo ali ele tentava manter a pose. O aroma nada agradável dentro da aeronave fez com que todos os passageiros e piloto ficassem sem respirar por vários minutos. Ele queria parar de suar, mas após resolver uma parte desta situação, lembrou que não havia visto uma ducha higiênica ou papel. Então resolveu ficar ali até o pouso da aeronave, que deve ter demorado varias décadas. Após o pouso, ele se manteve ali impávido. Se despediu de um por um, até que todos desembarcaram e ele pôde falar com o piloto, fazer a higiene e descer do avião para uma missão que agora parecia tomar pirulito de criança.

E tudo acabou bem, ganhando a causa. E agora, esquecer estas poucas horas que pareceram uma eternidade é algo que seria muito bom.

E esqueceria, se o Marcelão não escrevesse esse texto e eu não o publicasse aqui nesse blog.

sábado, março 22, 2008

Hallelujah

Jeff Buckley morreu em 1997 com uma carreira ainda por fazer. Foi nadar num afluente do Mississipi e enquanto um amigo o escutava cantarolando “Whole Lotta Love”, algo aconteceu e seu corpo só foi encontrado uma semana depois, bem longe do local. Quem escutar sua voz estará irremediavelmente ligada a ela. Não dá pra esquecer. Buckley interpretou uma música de Leonard Cohen que acabou virando uma lenda. Um hino. Já a escutei por pessoas que nem imaginava que gostavam dela. É música de se ouvir de olhos fechados. Como num dia de hoje.




Hallelujah, com Jeff Buckley

(Leonard Cohen)

I've heard there was a secret chord

that David played and it pleased the lord

but you don't really care for music do you?

Well it goes like this the fourth, the fifth

the minor fall and the major lift

the baffled king composing hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Well your faith was strong but you needed proof

you saw her bathing on the roof

her beauty and the moonlight overthrew you

she tied you to her kitchen chair

she broke your throne and she cut your hair

and from your lips she drew the hallelujah.

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Baby I've been here before

I've seen this room and I've walked this floor

You know, I used to live alone before I knew you

And I've seen your flag on the marble arch

and love is not a victory march

it's a cold and it's a broken hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Well there was a time when you let me know

what's really going on below

but now you never show that to me do you?

but remember when I moved in you

and the holy dove was moving too

and every breath we drew was hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Well maybe there's a God above

but all I've ever learned from love

was how to shoot somebody who outdrew you

And it's not a cry that you hear at night

it's not somebody who've seen the light

it's a cold and it's a broken hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Hallelujah

Prosas curtas sobre separações – 5

Como o óbvio título diz, essa série trata de separações. Mas separações não são só físicas. Elas podem ser feitas mediante a colocação de um Oceano Atlântico entre duas pessoas, como no texto do mês passado. Ou não. Ou podem ocorrer numa simultaneidade de presenças absolutamente brutal.

Afinal de contas, o que são separações?
Mais que uma mulher

Era uma tarde clara, daquelas quando a época do ano faz com que o Sol cruze a abóbada celeste bem ao Norte, como a entrar pelos olhos horizontalmente. Era um tempo que o sustento era difícil para os profissionais de sua área de atuação. A recessão que o país passava sufocava os negócios imobiliários e qualquer trabalho, por menor que fosse, ajudava no orçamento, permitindo que os credores fossem enfrentados com mais coragem.

Seu possível cliente — um investidor com dinheiro para fazer uma grande compra, algo raro naqueles tempos — passou para pegá-lo com a intenção de lhe mostrar um imóvel que estava interessado e queria um trabalho de avaliação. Ele não sabia que imóvel seria objeto do trabalho, pois o cliente queria confidencialidade no negócio. Havia conseguido as chaves com um dos proprietários e iria visitar o imóvel, fechado há anos, com um profissional que pudesse lhe abastecer de informações para sua tomada de decisão. O trânsito insuportável do lado de fora daquele carro alemão parecia reservado apenas aos mortais, que não dispunham do silêncio e do ar refrigerado que envolviam aquele ambiente refinado, com bancos de couro, vidros escuros e blindados, amplo espaço nos bancos traseiros e ainda a despreocupação com o ato de dirigir, reservado a um rapaz de uns vinte e cinco anos, com óculos e terno escuros a esconder músculos arduamente trabalhados.

O caminho percorrido diminuiu-lhe a surpresa de parar bem em frente àquele velho clube noturno, há muito tempo fechado e abandonado. Sua atual fachada se reduzira a um muro construído porcamente no alinhamento do imóvel, com um portão de chapa metálica de pequena espessura pregado sobre um quadro de madeiras toscas, a servir de entrada para o imóvel. Quem não conhecia o interior nem imaginava o que ali existia. Ou existira. O muro, encimado por uma verdadeira parede de outdoors, era como enormes barbas grisalhas e mal cuidadas e profundas rugas a esconder um rosto que antes já fora altivo e alegre, característico dos jovens. Tentava enxergar por entre as placas publicitárias, buscando a velha e linda fachada afastada e majestosa do clube, concebida nos anos 50, quando as pessoas tinham na alma o otimismo pós-guerra, que o Mal havia sido vencido, que tudo iria ser maravilhoso. Foi quando o investidor lhe convidou a entrar. O motorista já havia aberto o portão e voltara para cuidar do automóvel; entrou e pôde ver como o tempo pode ser cruel com as coisas bonitas. Sua memória fazia emergir imagens do passado para se colar àquela realidade, talvez na tentativa de maquiar aquela feiúra, aquela fachada descuidada. Tentava encaixar pastilhas sobre pilares pelados, vidros bisotados sobre esquadrias apodrecidas pela ferrugem, carpetes vermelhos sobre uma rampa esburacada. Tentava florescer arbustos sobre chão coberto de lixo, tentava vislumbrar dois pequenos leões de pedra que guardavam a entrada e agora não mais presentes. Tentava sentir o delicioso aroma de pipoca feita na hora num carrinho na calçada e não o cheiro ardido de urina, indicando a presença mais que humana naquele ambiente. A memória insistia em querer se sobrepor à realidade, as tintas de tempos maravilhosos passados naquele prédio.

Os dois entraram no imóvel com o investidor fazendo perguntas a respeito das características da construção, da localização. Seria razoável aproveitar a estrutura do prédio? Ou apenas utilizar o terreno, demolindo tijolo por tijolo? As perguntas lhe vazavam os ouvidos, pois sua atenção se fixara na tentativa de sua memória em colar sobre as imagens que ia vendo, aquelas que há muito havia visto. Colar arte final sobre rascunho. Sim, uma espécie de rascunho invertido, pois este já não trazia a expectativa de evolução para algo finalizado, construído. Era a própria imagem da destruição, não só do aspecto físico do prédio, mas também do que ele representou um dia, quando jovens lotavam o lugar em busca dos amigos, dos amores, das emoções próprias da idade. Era agora um prédio escuro, mas isso era lógico. Nunca havia entrado ali com as luzes apagadas. Toda aquela entrada era sempre bem iluminada nos tempos de luz. Holofotes direcionados para quadros na parede jogavam luz indireta sobre as pessoas. A iluminação daquele ambiente era de um bom gosto incrível. As pessoas não se sentiam agredidas pela claridade, ao contrário, os pontos luminosos eram em sua maioria imperceptíveis. Apenas os objetos iluminados recebiam destaque e não a fonte luminosa. As tapeçarias nas paredes, os quadros, as esculturas, uma fonte simpática a jorrar água sobre si mesma, as pessoas. Estes eram os atores principais daquela peça que acontecia naquele tempo. Naquele momento, observando o ambiente, a memória lhe trazia os rostos das pessoas que freqüentavam aquele lugar e elas eram bem diferentes da realidade de então. Os rapazes e as moças — como era difícil se lembrar com estas palavras: rapazes e moças, vocabulário mais arcaico para estes dias difíceis... — tinham aspectos dos mais estranhos, visto a evolução da moda e dos costumes. Os caras — sim, já eram assim chamados — que gostavam de se mostrar mais atuais cortavam seu cabelo como John Travolta nos filmes em que à época faziam sucesso. Outros ainda mantinham o que sobrou do final dos anos sessenta e início dos setenta. Cabelos compridos como os das bandas de rock que apareceram naquela época, preenchendo o vazio deixado pelos Beatles e ocupando os corações e mentes daqueles jovens que não tiveram a oportunidade de ver John, nem Paul, nem George, nem Ringo. Mas algo era comum a todos e os tornava uma tribo: as calças de boca larga, a rodear toda a circunferência dos sapatos plataforma. Algumas ainda com cintura baixa a deixar a já aposentada Brigit Bardot com saudades de seu tempo. Inimagináveis barrigas masculinas ficavam à mostra, deixando em vantagem os adolescentes que praticavam algum esporte. Talvez isso explicasse como o esporte naquela década era tão valorizado pelos jovens daqueles anos. As meninas eram quase uma tribo única. Cabelos, em sua maioria compridos — lisos conviviam com enrolados sem nenhum preconceito, pois não havia ainda a ditadura da pranchinha, a nivelar belezas das meninas adolescentes —, saias rodadas, meias de lurex — para quem nunca viu, uma malha com pontos brilhantes — dentro de sandálias glamurosas. Pontos brilhantes. Talvez esse fosse o ponto. Ou os pontos que faziam a diferença para ele. As pessoas eram pontos brilhantes e era assim que ele as via. Sentia-se com um deles, naquela época. Havia decidido assim permanecer e por isso, se juntara a outro ponto luminoso. A idéia era ampliar a luz, expandi-la para outras fronteiras.

Nesta hora, quebrando a ligação com os tempos passados, o investidor lhe chama a atenção para a amplitude do lugar. Estavam no salão principal da construção e mesmo para um capitalista convicto, aquilo era maravilhoso e ele falava dos tacos da madeira nobre em composição geométrica que não mais existia naqueles dias atuais, dos forros de gesso em formato de ameba, típicos dos anos 50, das colunas com desenhos e grafismos em que a cultura dos anos de globalização banalizaram. Ele sorriu e sentiu que mesmo alguém que apenas se preocupava com o retorno sobre o investimento também reconhecia aquilo que ele um dia havia reverenciado. Olhava para o teto quando o investidor — tomado de um entusiasmo incomum aos que se preocupam apenas com o saldo bancário —, puxou as grossas, velhas e empoeiradas cortinas, deixando que os raios de sol penetrassem no ambiente por enormes esquadrias guardando ainda vidros embaçados e sujos. Pelo horário, o Sol já se preparava para deixar aquelas paisagens. Ia inclinado, quase a tocar o horizonte, mas com força suficiente para jorrar seus fótons por sobre um até então não notado globo de espelhos preso ao teto do salão. O ato de abertura das cortinas, não apenas por si só, mas pelo jorro no globo, iluminaram o ambiente caquético. Pedacinhos de luz se espalharam pelas paredes, pelo teto, pelo chão. Espalharam-se pela sua mente, pela sua memória. Imediatamente lhe veio nos ouvidos — ouvidos distantes, de memória apenas — uma música daqueles anos. Era uma música que tocara à exaustão naquela época. Os irmãos que a cantavam faziam rios de dinheiro com músicas lentas — como os caras daquela época gostavam de músicas lentas... — e outras, podemos dizer, de balanço. Mas a que ele se lembrou no momento, vendo aqueles pedacinhos de luz espalhados pelo ambiente, foi uma que dizia algo sobre uma mulher que fazia parte de tudo que ele fazia, cujos braços o fazia se sentir como se tivesse encontrado o paraíso. Braços que deixara descansar sua cabeça, sua alma. Braços que havia segurado, conduzido pelas notas daquela música que dizia algo sobre uma mulher que era muito mais que uma simples mulher. Para ele, muito mais que uma mulher. Naquela época, ele achava que passados mil anos, ele voltaria a se apaixonar por aquela mulher. Imaginava que se a perdesse, morreria. O globo estava parado — o movimento daqueles tempos o embriagava — mas refletia pontos por todos os lados. Olhou para seu lado e nem o investidor viu. Poeira, tempo putrefato, dias passados era o que via. Sua memória cansada foi buscar nos recônditos do cérebro as lembranças daqueles dias. Os cabelos, a saia rodada, os olhos. O conjunto maravilhoso flutuando no ar, na memória, no ar agora empoeirado. Onde estariam agora todos aqueles elementos? Onde havia se escondido aquele olhar? E aqueles cabelos, aquela pele de seda? Aquele espírito livre, disposto a mudar o mundo, a beijá-lo com lábios não aflitos de vida, mas ansiosos, elevando a alma, as almas, a um pedestal elevado, a um altar humano, demasiadamente humano. Onde estaria aquele coração pulsante, a ritmar o colo branco, vibrando os seios ansiosos de vida? Onde estaria a sede, a fome, a vontade?

A razão começou a lhe trazer para os dias atuais. Enquanto os pontos luminosos lhe levavam ao passado, flashs invertidos — como negativos de fotografias — lhe faziam se sentir nos dias atuais. Naqueles que seriam os dias futuros daqueles maravilhosos dias. Pensava como seria no final do dia ao voltar para sua casa. A história não havia sido como imaginara, como a música dos Bees Gees descrevia. Na sua casa havia outra mulher, diferente daquela que recebera aqueles pontos de luz refletidos pelo globo de espelhos. Diferente em alma. Diferente em olhos. Diferente em seios, em lábios, em flancos nem tanto agora ansiosos.

A razão — ou as palavras objetivas do investidor — lhe traziam à realidade. Valia ou não a pena o investimento? Jogar ao chão ou restaurar aquele imóvel? Sugeriu o fechamento da cortina, pois o Sol já se ia; propôs a saída do salão, já que a poeira invadia os canais nasais. Incentivou a observação externa do prédio — a alma já caía em prantos.
Do lado de fora, um rapaz de uns vinte e cinco anos, com óculos e terno escuros a esconder músculos arduamente trabalhados, guardava um carro alemão, escuro, como a noite que se avizinhava. A última visão do edifício, o último elogio ao elemento imobiliário, ao ente cosmopolita, indivíduo urbano daquela comunidade de olhos cegos, de ouvidos moucos, de boca rota.

O compromisso feito de uma avaliação absolutamente profissional, indicando as melhores opções de retorno, buscando alavancar os investimentos com melhores taxas de retorno e menor pay back estariam disponibilizadas na semana posterior. O cadeado dourado fechava os toscos portões enquanto fechavam sobre si mesmos as portas blindadas com couro de cor bege, elegantes e suaves. O ar refrigerado já estava ligado para maior conforto dos ocupantes do automóvel que se mostrava superior aos demais veículos daquela via transversal. A movimentação da máquina, a compenetração do trabalho do motorista, a ansiedade por retorno sobre o capital do investidor, confrontavam com a sua vontade de voltar para sua casa. Iria olhar para os olhos da mulher que lá estava. Iria tentar sentir o coração a pulsar sob os seios. Seria ela mais que uma mulher?

Música: More Than a Woman
Intérpretes: Bee Gees



sexta-feira, março 21, 2008

Sem título

Se de repente

Pinta um sim,

Pinta um Chaplin

A nanquim

No caderno de latim,

Que não existe mais.


quinta-feira, março 20, 2008

Nua e crua

Pura pureza

Bela beleza

Feia feiúra.


Paúra

De olhar para a vida

E ver

A nua e pura

Feiúra

Da beleza.


Crueza

Do corpo estendido no plano

Na mesa

E os pêlos

Pretos

Proeminentes

Distantes

Vibrantes

Absolutamente

Cativantes

Pelos perfumes dos órgãos

Que brotam dos grãos

Apaixonados pelas mãos

Donas dos nãos

Donas dos sins

Dos dedos trêmulos

Dedos afins

Êmbolo

De acesso ao fim.


sábado, março 15, 2008

Arte

Já há muito tempo que o cara se dedica à arte e toda vez que nos encontramos para uma cerveja é ele quem cuida da carne. Já evoluiu de tal forma que consegue tomar conta de tudo sem fazer aquela bagunça que a gente sempre faz num churrasco. E o Marcelão já ultrapassou a barreira que separa aqueles que apenas gostam de fazer daqueles que fazem porque gostam. Aí então, uma carne “assim nem tanto” fica maravilhosa sob sua condução. O que dizer então de uma picanha maturada no limiar do estado de mal passada? A seguir, uma obra de arte com a assinatura de Marcelo Spini.

domingo, março 09, 2008

Alguns amigos

Encontrar com amigos é uma delícia! De certa forma, nos renovamos um pouquinho quando encontramos aqueles que nos viram ainda jovens. Buscamos memórias, contamos “causos”. A cerveja que embala esse encontros parece conter também um certo elixir da juventude. Como se recuperássemos algum tempo, se não alguns meses, pelo menos alguns momentos trazemos de volta.

Na casa do Merola, em homenagem à Cláudia, muitos daqueles de antigamente estavam lá. E sempre sai uma ou outra história. O Tribuna me autorizou a publicar uma determinada história aqui no blog, mas farei isso numa outra oportunidade. Mas publico uma outra dele, acontecida nos tempos em que tudo era muito simples. De uma simplicidade que nos faziam felizes.


A Pipoca, o Tribuna e o picolezeiro

Sempre se diz que quando se conta um conto se aumenta um ponto. Neste caso, acho que acrescento o milésimo primeiro, tantas vezes ele foi contado. Várias versões correm por aí e esta é apenas mais uma; e claro, não é a verdadeira, principalmente porque eu não estava lá. E mais, se estivesse, teria colocado meu ponto também. Mas vá lá. O que importa não é como aconteceu. A importância está em lembrar, escrever, lembrar, reviver, lembrar.

Ele transformou-se num respeitado advogado, eficiente em suas causas e referência para seus colegas. Mas para os amigos de antigamente era e continua sendo o Tribuna – certa vez no cursinho pré-vestibular, já sem paciência de tanto escutá-lo conversando na sala de aula, o professor disparou: “Pô! Você não pára de falar! Tá achando que está numa tribuna?”. Foi o suficiente.

Mas naquela época ele apenas pensava em se tornar um advogado. Ou não. Tinha acabado de fazer o NPOR e as doutrinas do Exército Brasileiro ainda pairavam sobre sua cabeça. Naquela tarde, ia para um compromisso, um estágio ou algo que necessitasse o uso de mangas compridas num calor de cerrado. Mas o Kenner e o Júnior não tinham um compromisso tão sério. O único objetivo naquele dia era fazer aquele automóvel que eles tinham em sociedade funcionar. Era um exemplar hoje raro de uma camionete Ford V8, nas cores branca e verde claro, do início dos anos 60, daquelas que se trabalha dentro do capô. Lataria dura como a vida. Comprada com suas economias, (toca fitas Mecca, conhecido como comedor de fita) sempre recebia todas as atenções da dupla. Eles nunca haviam fumado. Não haviam se encontrado com Bob Dylan, gostavam mesmo era de mecânica e cerveja. A camionete até nome tinha: Pipoca era como uma namorada dividida por dois primos. As câmaras de ar saiam dos pneus, como que pedissem liberdade. Óleo pingava por onde ela parasse. Desnecessário dizer que foi comprada por preço baixo porque quase nada nela funcionava. Mas quando funcionava, o seu ruído era um espetáculo à parte. Todos na rua olhavam para seus ocupantes: Kenner e Júnior, mais algum exultante convidado. Naquele dia, a Pipoca até que estava funcionando, com apenas um detalhe: quando em movimento, não podia ser parada porque seu motor apagaria e nova jornada capô a dentro deveria ser implementada. Foi quando Tribuna chegou ali na Princesa Isabel e perguntou se não podia ganhar uma carona. Estava indo para seu estágio num escritório de advocacia e chegar lá sem nenhuma mancha de suor na camisa de mangas compridas não seria nada mal. Kenner estava mergulhado dentro do motor da "poderosa" tentando destravar as marchas. Os dois "mecânicos" disseram que tudo bem. Podia. Mas não ia dar para parar porque senão a máquina apagaria e o trabalho deveria ser feito novamente.

— O que que é isso? Vocês estão pensando o que? bradou um exaltado Tribuna.

— O cara ficou bravo com a gente... pensou um dos dois.

— Vocês esqueceram que eu sou Tenente da reserva? No Exército fiz várias operações que a gente saltava de um caminhão em movimento. É simples. Na hora de descer, eu abro a porta e salto. Vai ser mole!

Os dois olharam um para a cara do outro, nenhum tinha feito serviço militar, não sabiam o que era saltar de um caminhão verde oliva em movimento, com arma e mochila, mas se ele estava dizendo que era mole, era mole. Vamos lá. Feita a trabalheira de ligar e manter em funcionamento a geringonça estavam lá o Kenner na direção, o Júnior no meio e o Tribuna na janela. Para fora dela o cotovelo embrulhado numa camisa de mangas compridas, calças pretas compondo um figurino de um cara sério, Tenente da reserva e futuro advogado, num corpo esguio e alto, ainda com os músculos formados pela mãe Pátria. A Pipoca deu uma rateada, cuspiu um pouco de fumaça, mas aquele maravilhoso ruído mais uma vez chamou a atenção de quem estava por ali. Os três saíram orgulhosos, subindo a Princesa Isabel rumo à praça Raul Soares. Alguns malabarismos do então futuro piloto de rally e secretário municipal para não atropelar Dona Páscoa, nem bater na primeira esquina foram necessários, mas a máquina ia muito bem. A conversa corria solta, falavam da maravilha que era aquela máquina, de como implementariam melhorias naquela conquista. O mundo era bem mais bonito e pequeno do alto daquela cabine. Enquanto isso o Sol castigava o asfalto da Cipriano Del Fávero.

Logo após passar pela praça Sérgio Pacheco — sob o viaduto que ligava o centro da cidade à avenida Fernando Vilela — Tribuna fala que vai descer. Pedir para diminuir a marcha nem pensar. O cara já tinha saltado de um caminhão com um fuzil FAL carregado! Apertou a mão do Kenner, a do Júnior, agradeceu a carona e ouviu um tímido pedido de cuidado. Combinaram que à noite poderiam ir tomar uma cerveja no Willian. O Kenner prometeu ao Júnior que, se fossem, não usaria nenhum sapato dele (do Júnior!) nem o perfume novo que ele havia ganhado. O Tribuna abriu a pesada porta, pisou naquele largo estribo que só as antigas camionetes tinham, fechou a porta. Mais uma saudação e pulou. Como Kenner não sabia pular de um veículo em movimento, perguntou ao Júnior: “E aí?” Momentos de suspense... “O Tribuna caiu!” disse Júnior. Kenner pensou, o que era pior: se o encavalamento das marchas ou o tombo do dito cujo. Rapidamente olhou pelo retrovisor interno para certificar-se do acontecido. O que viu foi algo rolando pelo asfalto, como se fosse um pacote com camisa de mangas compridas e calças pretas. Claro que tiveram de parar e o motor da Pipoca mais uma vez apagou. Júnior olhou para trás e o Tribuna já havia se levantado e um picolezeiro — que passava pelo local tentando implementar seu negócio — tentava ajudar e pelo gestual do Tribuna parecia que ele falava:

— Não se preocupe! Está tudo bem! Sem problemas! limpando os ombros, as coxas e o orgulho próprio ferido.

Quando os dois chegaram perto viram que uma camisa de mangas compridas a menos existia no mundo e um “causo” a mais surgia para o Kenner e o Júnior, mestres na arte de contar “causos”, espalharem para todos os amigos.

Até hoje, quando um dos dois contam este fato junto a algumas garrafas de cerveja, todos, inclusive o ator principal, choram de rir. Talvez pelo fato de nunca terminarem o caso — impossibilitados pelo riso —, nunca se soube se a Pipoca logo funcionou, se o Tribuna voltou para casa, se compraram um picolé ou se foram à noite tomar algumas cervejas.