Mais que uma mulher
Era uma tarde clara, daquelas quando a época do ano faz com que o Sol cruze a abóbada celeste bem ao Norte, como a entrar pelos olhos horizontalmente. Era um tempo que o sustento era difícil para os profissionais de sua área de atuação. A recessão que o país passava sufocava os negócios imobiliários e qualquer trabalho, por menor que fosse, ajudava no orçamento, permitindo que os credores fossem enfrentados com mais coragem.
Seu possível cliente — um investidor com dinheiro para fazer uma grande compra, algo raro naqueles tempos — passou para pegá-lo com a intenção de lhe mostrar um imóvel que estava interessado e queria um trabalho de avaliação. Ele não sabia que imóvel seria objeto do trabalho, pois o cliente queria confidencialidade no negócio. Havia conseguido as chaves com um dos proprietários e iria visitar o imóvel, fechado há anos, com um profissional que pudesse lhe abastecer de informações para sua tomada de decisão. O trânsito insuportável do lado de fora daquele carro alemão parecia reservado apenas aos mortais, que não dispunham do silêncio e do ar refrigerado que envolviam aquele ambiente refinado, com bancos de couro, vidros escuros e blindados, amplo espaço nos bancos traseiros e ainda a despreocupação com o ato de dirigir, reservado a um rapaz de uns vinte e cinco anos, com óculos e terno escuros a esconder músculos arduamente trabalhados.
O caminho percorrido diminuiu-lhe a surpresa de parar bem em frente àquele velho clube noturno, há muito tempo fechado e abandonado. Sua atual fachada se reduzira a um muro construído porcamente no alinhamento do imóvel, com um portão de chapa metálica de pequena espessura pregado sobre um quadro de madeiras toscas, a servir de entrada para o imóvel. Quem não conhecia o interior nem imaginava o que ali existia. Ou existira. O muro, encimado por uma verdadeira parede de outdoors, era como enormes barbas grisalhas e mal cuidadas e profundas rugas a esconder um rosto que antes já fora altivo e alegre, característico dos jovens. Tentava enxergar por entre as placas publicitárias, buscando a velha e linda fachada afastada e majestosa do clube, concebida nos anos 50, quando as pessoas tinham na alma o otimismo pós-guerra, que o Mal havia sido vencido, que tudo iria ser maravilhoso. Foi quando o investidor lhe convidou a entrar. O motorista já havia aberto o portão e voltara para cuidar do automóvel; entrou e pôde ver como o tempo pode ser cruel com as coisas bonitas. Sua memória fazia emergir imagens do passado para se colar àquela realidade, talvez na tentativa de maquiar aquela feiúra, aquela fachada descuidada. Tentava encaixar pastilhas sobre pilares pelados, vidros bisotados sobre esquadrias apodrecidas pela ferrugem, carpetes vermelhos sobre uma rampa esburacada. Tentava florescer arbustos sobre chão coberto de lixo, tentava vislumbrar dois pequenos leões de pedra que guardavam a entrada e agora não mais presentes. Tentava sentir o delicioso aroma de pipoca feita na hora num carrinho na calçada e não o cheiro ardido de urina, indicando a presença mais que humana naquele ambiente. A memória insistia em querer se sobrepor à realidade, as tintas de tempos maravilhosos passados naquele prédio.
Os dois entraram no imóvel com o investidor fazendo perguntas a respeito das características da construção, da localização. Seria razoável aproveitar a estrutura do prédio? Ou apenas utilizar o terreno, demolindo tijolo por tijolo? As perguntas lhe vazavam os ouvidos, pois sua atenção se fixara na tentativa de sua memória em colar sobre as imagens que ia vendo, aquelas que há muito havia visto. Colar arte final sobre rascunho. Sim, uma espécie de rascunho invertido, pois este já não trazia a expectativa de evolução para algo finalizado, construído. Era a própria imagem da destruição, não só do aspecto físico do prédio, mas também do que ele representou um dia, quando jovens lotavam o lugar em busca dos amigos, dos amores, das emoções próprias da idade. Era agora um prédio escuro, mas isso era lógico. Nunca havia entrado ali com as luzes apagadas. Toda aquela entrada era sempre bem iluminada nos tempos de luz. Holofotes direcionados para quadros na parede jogavam luz indireta sobre as pessoas. A iluminação daquele ambiente era de um bom gosto incrível. As pessoas não se sentiam agredidas pela claridade, ao contrário, os pontos luminosos eram em sua maioria imperceptíveis. Apenas os objetos iluminados recebiam destaque e não a fonte luminosa. As tapeçarias nas paredes, os quadros, as esculturas, uma fonte simpática a jorrar água sobre si mesma, as pessoas. Estes eram os atores principais daquela peça que acontecia naquele tempo. Naquele momento, observando o ambiente, a memória lhe trazia os rostos das pessoas que freqüentavam aquele lugar e elas eram bem diferentes da realidade de então. Os rapazes e as moças — como era difícil se lembrar com estas palavras: rapazes e moças, vocabulário mais arcaico para estes dias difíceis... — tinham aspectos dos mais estranhos, visto a evolução da moda e dos costumes. Os caras — sim, já eram assim chamados — que gostavam de se mostrar mais atuais cortavam seu cabelo como John Travolta nos filmes em que à época faziam sucesso. Outros ainda mantinham o que sobrou do final dos anos sessenta e início dos setenta. Cabelos compridos como os das bandas de rock que apareceram naquela época, preenchendo o vazio deixado pelos Beatles e ocupando os corações e mentes daqueles jovens que não tiveram a oportunidade de ver John, nem Paul, nem George, nem Ringo. Mas algo era comum a todos e os tornava uma tribo: as calças de boca larga, a rodear toda a circunferência dos sapatos plataforma. Algumas ainda com cintura baixa a deixar a já aposentada Brigit Bardot com saudades de seu tempo. Inimagináveis barrigas masculinas ficavam à mostra, deixando em vantagem os adolescentes que praticavam algum esporte. Talvez isso explicasse como o esporte naquela década era tão valorizado pelos jovens daqueles anos. As meninas eram quase uma tribo única. Cabelos, em sua maioria compridos — lisos conviviam com enrolados sem nenhum preconceito, pois não havia ainda a ditadura da pranchinha, a nivelar belezas das meninas adolescentes —, saias rodadas, meias de lurex — para quem nunca viu, uma malha com pontos brilhantes — dentro de sandálias glamurosas. Pontos brilhantes. Talvez esse fosse o ponto. Ou os pontos que faziam a diferença para ele. As pessoas eram pontos brilhantes e era assim que ele as via. Sentia-se com um deles, naquela época. Havia decidido assim permanecer e por isso, se juntara a outro ponto luminoso. A idéia era ampliar a luz, expandi-la para outras fronteiras.
Nesta hora, quebrando a ligação com os tempos passados, o investidor lhe chama a atenção para a amplitude do lugar. Estavam no salão principal da construção e mesmo para um capitalista convicto, aquilo era maravilhoso e ele falava dos tacos da madeira nobre em composição geométrica que não mais existia naqueles dias atuais, dos forros de gesso em formato de ameba, típicos dos anos 50, das colunas com desenhos e grafismos em que a cultura dos anos de globalização banalizaram. Ele sorriu e sentiu que mesmo alguém que apenas se preocupava com o retorno sobre o investimento também reconhecia aquilo que ele um dia havia reverenciado. Olhava para o teto quando o investidor — tomado de um entusiasmo incomum aos que se preocupam apenas com o saldo bancário —, puxou as grossas, velhas e empoeiradas cortinas, deixando que os raios de sol penetrassem no ambiente por enormes esquadrias guardando ainda vidros embaçados e sujos. Pelo horário, o Sol já se preparava para deixar aquelas paisagens. Ia inclinado, quase a tocar o horizonte, mas com força suficiente para jorrar seus fótons por sobre um até então não notado globo de espelhos preso ao teto do salão. O ato de abertura das cortinas, não apenas por si só, mas pelo jorro no globo, iluminaram o ambiente caquético. Pedacinhos de luz se espalharam pelas paredes, pelo teto, pelo chão. Espalharam-se pela sua mente, pela sua memória. Imediatamente lhe veio nos ouvidos — ouvidos distantes, de memória apenas — uma música daqueles anos. Era uma música que tocara à exaustão naquela época. Os irmãos que a cantavam faziam rios de dinheiro com músicas lentas — como os caras daquela época gostavam de músicas lentas... — e outras, podemos dizer, de balanço. Mas a que ele se lembrou no momento, vendo aqueles pedacinhos de luz espalhados pelo ambiente, foi uma que dizia algo sobre uma mulher que fazia parte de tudo que ele fazia, cujos braços o fazia se sentir como se tivesse encontrado o paraíso. Braços que deixara descansar sua cabeça, sua alma. Braços que havia segurado, conduzido pelas notas daquela música que dizia algo sobre uma mulher que era muito mais que uma simples mulher. Para ele, muito mais que uma mulher. Naquela época, ele achava que passados mil anos, ele voltaria a se apaixonar por aquela mulher. Imaginava que se a perdesse, morreria. O globo estava parado — o movimento daqueles tempos o embriagava — mas refletia pontos por todos os lados. Olhou para seu lado e nem o investidor viu. Poeira, tempo putrefato, dias passados era o que via. Sua memória cansada foi buscar nos recônditos do cérebro as lembranças daqueles dias. Os cabelos, a saia rodada, os olhos. O conjunto maravilhoso flutuando no ar, na memória, no ar agora empoeirado. Onde estariam agora todos aqueles elementos? Onde havia se escondido aquele olhar? E aqueles cabelos, aquela pele de seda? Aquele espírito livre, disposto a mudar o mundo, a beijá-lo com lábios não aflitos de vida, mas ansiosos, elevando a alma, as almas, a um pedestal elevado, a um altar humano, demasiadamente humano. Onde estaria aquele coração pulsante, a ritmar o colo branco, vibrando os seios ansiosos de vida? Onde estaria a sede, a fome, a vontade?
A razão começou a lhe trazer para os dias atuais. Enquanto os pontos luminosos lhe levavam ao passado, flashs invertidos — como negativos de fotografias — lhe faziam se sentir nos dias atuais. Naqueles que seriam os dias futuros daqueles maravilhosos dias. Pensava como seria no final do dia ao voltar para sua casa. A história não havia sido como imaginara, como a música dos Bees Gees descrevia. Na sua casa havia outra mulher, diferente daquela que recebera aqueles pontos de luz refletidos pelo globo de espelhos. Diferente em alma. Diferente em olhos. Diferente em seios, em lábios, em flancos nem tanto agora ansiosos.
A razão — ou as palavras objetivas do investidor — lhe traziam à realidade. Valia ou não a pena o investimento? Jogar ao chão ou restaurar aquele imóvel? Sugeriu o fechamento da cortina, pois o Sol já se ia; propôs a saída do salão, já que a poeira invadia os canais nasais. Incentivou a observação externa do prédio — a alma já caía em prantos.
Do lado de fora, um rapaz de uns vinte e cinco anos, com óculos e terno escuros a esconder músculos arduamente trabalhados, guardava um carro alemão, escuro, como a noite que se avizinhava. A última visão do edifício, o último elogio ao elemento imobiliário, ao ente cosmopolita, indivíduo urbano daquela comunidade de olhos cegos, de ouvidos moucos, de boca rota.
O compromisso feito de uma avaliação absolutamente profissional, indicando as melhores opções de retorno, buscando alavancar os investimentos com melhores taxas de retorno e menor pay back estariam disponibilizadas na semana posterior. O cadeado dourado fechava os toscos portões enquanto fechavam sobre si mesmos as portas blindadas com couro de cor bege, elegantes e suaves. O ar refrigerado já estava ligado para maior conforto dos ocupantes do automóvel que se mostrava superior aos demais veículos daquela via transversal. A movimentação da máquina, a compenetração do trabalho do motorista, a ansiedade por retorno sobre o capital do investidor, confrontavam com a sua vontade de voltar para sua casa. Iria olhar para os olhos da mulher que lá estava. Iria tentar sentir o coração a pulsar sob os seios. Seria ela mais que uma mulher?
Música: More Than a Woman
Intérpretes: Bee Gees
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