sábado, setembro 27, 2008

Ninguém escapa

João Guimarães Rosa era um mineiro. Não que sejamos melhores, não é isso... Somos apenas mineiros. E já é muito. Além de médico, escrevia coisas lindas, de um jeito — ao mesmo tempo — simples e rebuscado. Dominava a língua portuguesa como poucos o fizeram. Criou personagens que se entranharam na vida do Brasil da mesma forma como a vida deste país se entranhou nos tipos mostrados em suas histórias.

Mas Guimarães Rosa era antes de tudo, João. E João amou e viveu como seu coração o levou. Ou como gostaria de ter sido levado. Não saberemos. E assim, outro dia me dou com este texto que ele escreveu numa carta para sua amada Aracy. Como apaixonado o gênio é um homem comum. Do amor ninguém escapa.

Sinto e tenho a necessidade tremenda de sentir o amor como cousa não humana, super-humana, sublime, acima de tudo merecendo todos os sacrifícios, mesmo os mais inauditos. Sempre precisei disto. Isto ou nada. ‘Ou a perfeição, ou a pândega!’ Não me sastifaria um amor burguês, morno, conformado, dosado, raciocinando sobre conveniências ou inconveniências. Quando conheci você, estava já descrente de encontrar a mulher que seria minha, capaz de sentir como eu e amar assim.

Bogotá, 24/03/1943

domingo, setembro 21, 2008

Árvore

Tenho uma relação especial com as árvores. Olho pra elas, principalmente para as mais vividas e enxergo entidades. Como se fossem almas personificadas em raízes, tronco, galhos, folhas e flores. Olhar uma árvore de certa distância, percebendo toda a sua estrutura e composição nos dá uma paz imensa. Perceber a dificuldade da Natureza em a construir nos faz ver que toda a técnica aprendida, principalmente para nós engenheiros, não faz o menor sentido perto da maravilha que é uma árvore.


Mas ao se aproximar, chegar perto mesmo e se sentir sob sua proteção é algo que faz imaginar que elas têm mesmo uma alma. Talvez pelo observar cotidiano que elas empreendem ao longo de anos e anos, sem a oportunidade de conhecer outros lugares as fazem especialistas naquilo que observam. E vêem o Sol, as nuvens, a Lua e os eclipses. E vêem os animais, as pessoas e o vento. E vêem a chuva, o frio e o calor. E vêem a vida, a morte e a sobrevida. E estão ali, a esperar.


Foto: Ugo Degani


sábado, setembro 20, 2008

Prosas curtas sobre separações - 9

Tanto mais doída será a separação quanto mais forte for o encontro. Pessoas se encontram, pessoas se separam, pessoas se reencontram. Em cada separação há sempre a dúvida do reencontro convivendo com a esperança dele. Uma separação tira o sono, deixa os olhos cansados, faz o peito arder. Detalhes que no momento pareciam sem importância se tornam as bases das lembranças nos períodos de separação. E são estas lembranças e esses detalhes que traduzem o sem sentido da separação.


Do not disturb

De repente, ele ficou ali a ler e ler e ler aquela papeleta pendurada na maçaneta daquela porta. Era o que lhe restava fazer até que chegasse a hora de descer, fechar a conta do hotel e ir embora tomar o ônibus. Mas não conseguia deixar de ler e ler e ler aquela papeleta. Ela ainda balançava como um pêndulo. Como naqueles relógios antigos, aumentando a velocidade até chegar ao máximo na parte de baixo da trajetória, chegar à velocidade zero nas laterais e voltar novamente, impulsionado pela aceleração da gravidade que age como um estilingue. Até que em determinado momento, as forças de atrito reduziriam a amplitude do movimento e a papeleta ficaria estática, sem nenhum movimento aparente. Com seu único propósito de alertar aos desavisados para não perturbarem o que aconteceria ali dentro daquele quarto.

Ele não esperou o pêndulo de papel mostrar respeito a uma das leis de Newton. Tentou voltar ao interior do quarto para arrumar as poucas coisas espalhadas por ali. Eram mesmo poucas coisas, poucas peças de roupas, um livro, um telefone celular, algumas poucas latas vazias de cerveja, os restos de duas embalagens de sanduíches triangulares. Foi arrumando tudo, como se tudo estivesse dentro de toda a normalidade esperada. Até os lençóis brancos da cama ele tentou deixar como estavam. Não queria falar para ninguém o que havia acontecido ali durante todo o dia. Nem mesmo à camareira do hotel. Num relance de olhos, percebeu que por pouco não esquecia o pequeno player de mp3. Há pouco o havia utilizado para dançar ao som de Frank Valli. Pegou os foninhos, colocou cada um num ouvido, ligou o aparelho e buscou uma música especial. Na noite anterior havia tido uma surpresa imensa ao saber que mais alguém muito especial também escutava aquela música, só que por um CD num carro enorme e preto. Buscou por aqueles botõezinhos pequenos com seus polegares e indicadores imensos. Play. Jeff Buckley começou a demonstrar toda sua capacidade de emocionar ao cantar Hallelujah. Ficou inerte tentando captar cada som, cada palavra [Talvez eu já estivesse aqui antes/ Eu vi este quarto, eu andei neste chão/ Eu vivia sozinho antes de conhecer você].

Ele se sentou à beira da cama e começou a relembrar a noite anterior. Havia chegado ao hotel cansado, depois de quilômetros de viagem. Ficara na dúvida se jantaria ali mesmo ou se procuraria um lugar mais interessante na cidade. Mas resolvera sair pelas ruas e chegar aos pés de um edifício imponente no alto da avenida. Foi subindo a colina, passando por praças, por ruas nunca vistas. As construções iam se alterando, de comerciais e antigas para residenciais e mais contemporâneas. Foi chegando a um bairro mais charmoso, com bares e restaurantes mais sofisticados. Nem percebeu que estava bem em frente ao edifício. Instantaneamente, parou. Percebeu que era ali o destino de sua busca. Também percebeu que o porteiro lhe olhava com desconfiança. Resolveu continuar em frente, atravessou a rua, foi até a porta de um restaurante italiano, observou bem as pessoas ali dentro, mas continuou até um telefone público. Quando percebeu, havia ligado para o último apartamento daquele edifício. Não deixou que atendessem. Deixou o aparelho no gancho e foi se encostar num poste de publicidade na esquina. O verão estava indo embora, mas Outono ainda não havia dado notícias e a noite estava quente e agradável. Seus olhos se direcionavam àquela varanda e percebeu que um vulto havia aparecido e saído dali. Ficou ali encostado, pensando no que poderia fazer, quando viu um carro vindo bem devagar. Quem dirigia o olhava com atenção e só aí é que ele a percebeu. O carro foi parando sob a escuridão da rua secundária e o poste foi deixado para trás. Quando ele entrou sua respiração lhe disse o que era felicidade. Os olhos dos dois se magnetizaram, conversando entre si. As palavras surgiram, mas não traduziram o que ambos sentiam. Ela então quis mostrar suas músicas gravadas especialmente num CD. Não as deixava terminar, sabendo que no tempo que dispunham apenas trechos poderiam ser ouvidos. Foi quando a música tocou e ele quase perdeu os sentidos. Quase se esqueceu que era Jeff Buckley que a cantava em seu player. Ali era outra versão, mais uma entre tantas para aquela música maravilhosa. Percebeu mais uma vez, o quanto tinha em comum com ela. Via como sua alma era um pedaço da dela e como a alma dela era um pedacinho da sua. O carro deslizou pelas ruas estreitas do bairro e o tempo ali dentro passou rápido, do mesmo modo que passa quando se tem a felicidade dentro de si. Os momentos ali dentro foram breves demais para tanto a dizer e a demonstrar. O tempo corria e ela teria que voltar.

A música ainda tocava nos foninhos e era como se a ouvisse naquele carro. Tudo o que aconteceu daquele momento que ele desceu do carro até o início daquela manhã parece que havia sido extirpado de sua memória. Tudo se resumia aos momentos em que esteve com ela e eles vinham em sua mente um após outro. A manhã havia se iniciado com a porta sendo aberta para que o sorriso dela entrasse. O abraço, as suas mãos grandes segurando o rosto suave para um beijo longo. O cheiro dos cabelos, os olhos fechados que não acreditavam que aqueles momentos estivessem existindo. Então ele fez novamente o gesto com as mãos, tentando envolver um rosto que não mais estava ali. Sentiu ainda o perfume em suas mãos. Uma mistura de aromas, de fragrâncias, de sensações. Tentou relembrar cada um dos momentos daquele dia. Passou por eles como se pudesse gravá-los num filme e assisti-los numa sala vazia e escura de cinema. Saberia perfeitamente quais seriam as cenas mais importantes, qual seria a trilha sonora. A malha macia da roupa preta que ela usava ainda enganava seus sentidos e o fazia além de quase enxergar, quase sentir o corpo dela ainda ali. Mas a seqüência de lembranças daquele dia acabou fazendo chegar ao momento em que ele abre a porta para que ela se vá. Ela o abraça pela última vez, vai para o corredor, olha mais uma vez e se vai. Esta cena já havia se repetido em outras ocasiões e mais uma vez ela havia desaparecido rumo ao elevador. Mas desta vez ele não saberia que seria a última.

As poucas coisas dele que estavam naquele quarto agora repousavam dentro de uma mochila. Ele chega próximo à janela e vê o Sol se caminhando para descer no horizonte. Barulhos de trens vindos de trilhos próximos o relembram de sua infância, quando os sonhos eram fartos e abundantes. Olha para o quarto como se quisesse fotografá-lo com os olhos. Olha para o tecido da cortina, para o estilo do abajur, para os travesseiros amarfanhados. Por todo o dia aquele quarto havia se transformado num templo. Por todo o dia naquele quarto o tempo pareceu estar parado, ao mesmo tempo em que pareceu correr muito mais rápido. As paredes, o teto o piso em carpete lhe carregavam a alma de uma sensação de abandono. Sentiu nas costas a mochila e se encaminhou para a porta. Tocou na papeleta, leu mais uma vez o aviso e pensou em levá-la como souvenir. Já a havia retirado da maçaneta quando concluiu que não precisaria de um souvenir. Voltou com ela para seu lugar, saiu, fechou a porta e imaginou a papeleta no movimento pendular. Tentou calcular o tempo que ela demoraria para a total inércia. Tentou calcular quanto tempo levaria para que ela novamente pudesse estar com ele. Mas sua mente não estava para cálculos e pagou sem pestanejar a conta do hotel. Tomou um táxi que o levaria a um posto na rodovia. De lá, pôde observar os edifícios na cidade, mas não conseguiria ver aquele no alto de uma colina. Mas se lembrou com carinho do poste de publicidade da esquina. Por alguma razão sabia que ele permaneceria intacto em sua memória.

O Sol laranja se vai por entre nuvens persistentes e ele se levanta do banco de madeira que ficava em frente às bombas de combustíveis, já pensando nas horas que passavam. O frentista do posto se aproxima, preocupado e pergunta se está esperando o ônibus. Ele diz que sim e pergunta se ele sempre atrasa. Ao confirmar, o ônibus aparece. Agradece a atenção do frentista, que sorri com um dente a menos. Cumprimenta o motorista e se senta logo atrás dele. Coloca os fones nos ouvidos e liga novamente o mp3 player. Hallelujah chegava ao seu fim e o dia também.

Música: Hallelujah
Intérprete: Jeff Buckley
Autor: Leonard Cohen

sábado, setembro 13, 2008

Ela



Ela pode ser o rosto que não consigo esquecer

Um traço de prazer ou arrependimento

Pode ser o tesouro ou

O preço que tenho que pagar


Ela pode ser a canção que o verão canta

Pode ser o arrepio que o outono traz

Pode ser as centenas de coisas diferentes

Que acontecem em um dia


Ela pode ser a bela ou a fera

Pode ser a fome ou a ceia

Pode se transformar todo dia em

Céu ou inferno


Ela pode ser o espelho dos meus sonhos

Um sorriso refletido em uma correnteza

Ela pode não ser o que parece

Dentro de sua casca


Ela que sempre parece feliz na multidão

Cujos olhos podem ser tão reservados e tão orgulhosos

Ninguém pode vê-los

Quando eles choram


Ela pode ser o amor que não vai durar

Pode vir a mim de sombras do passado

Que eu lembro até o dia que morrer


Ela pode ser a razão pela qual eu sobrevivo

O porquê de eu estar vivo

A pessoa com quem me preocuparei

Nos anos difíceis


Eu, levarei seu sorriso e suas lágrimas

E fazer deles minhas lembranças

Por que onde ela for, eu tenho que estar

O sentido de minha vida é ela, ela, ela...


She


Charles Aznavour


She may be the face I can't forget,

A trace of pleasure or regret,

May be my treasure or

The price I have to pay.


She may be the song that summer sings,

May be the chill that autumn brings,

May be a hundred different things

Within the measure of a day.


She may be the beauty or the beast,

May be the famine or the feast,

May turn each day into a

Heaven or a hell.


She may be the mirror of my dream,

A smile reflected in a stream,

She may not be what she may seem

Inside her shell.


She who always seems so happy in a crowd,

Whose eyes can be so private and so proud,

No one's allowed to see them

When they cry.


She may be the love that cannot hope to last,

May come to me from shadows of the past,

That I remember till the day I die.


She may be the reason I survive,

The why and wherefore I'm alive,

The one I'll care for through the

Rough and rainy years.


Me, I'll take her laughter and her tears

And make them all my souvenirs

For where she goes I've got to be.

The meaning of my life is she, she, she...