NO MUNDO DOS BLOGS. Todo mundo está se ligando, se conectando, se blogando. Os sinais de fumaça, os tambores, os pombos-correio, as cartas de papel, os telefonemas. Os blogs. Para começar, para ver como é que fica, vamos falar de tudo...
quinta-feira, junho 30, 2011
Eu Vou Estar
Eu Vou Estar
Capital Inicial
Eu não vou pro inferno
Eu não iria tão longe por você
Mas vai ser impossível não lembrar
Vou estar em tudo em que você vê
Nos seus livros, nos seus discos
Vou entrar na sua roupa
E onde você menos esperar
Eu vou estar
Eu não vou pro céu também
Eu não sou tão bom assim
E mesmo quando encontrar alguém
Você ainda vai ver, a mim
Nos seus livros, nos seus discos
Vou entrar na sua roupa
E onde você menos esperar
Embaixo da cama
Nos carros passando
No verde da grama
Na chuva chegando
eu vou voltar
Nos seus livros, nos seus discos
Vou entrar na sua roupa
E onde você menos esperar
Eu vou estar
terça-feira, junho 28, 2011
Desejo
Queria ser essa noite que te envolve; e
cobrir-te com o peso obscuro dos braços
que não se vêem. Um murmúrio
desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera num horizonte
de pálpebras. Deixarias que te olhasse
o fundo dos olhos, onde brilha
a imagem do amor. E sinto os teus dedos
soltarem-se da sombra, pedindo
o silêncio que antecede a madrugada.
Nuno Júdice
cobrir-te com o peso obscuro dos braços
que não se vêem. Um murmúrio
desceria de uma vegetação de palavras,
enrolando-se nos teus cabelos como
secretas folhas de hera num horizonte
de pálpebras. Deixarias que te olhasse
o fundo dos olhos, onde brilha
a imagem do amor. E sinto os teus dedos
soltarem-se da sombra, pedindo
o silêncio que antecede a madrugada.
Nuno Júdice
segunda-feira, junho 27, 2011
Lugares e Estados de Alma
A influência exercida sobre a nossa alma, pelos diferentes lugares, é uma coisa digna de observação. Se a melancolia nos conquista infalivelmente quando estamos à beira das águas, uma outra lei da nossa natureza impressionante faz com que, nas montanhas, os nossos sentimentos se purifiquem: ali a paixão ganha em profundidade o que parece perder em vivacidade.
terça-feira, junho 21, 2011
Finalmente - por Renato Cabral
Quando li a parte que o Cabral diz "aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam", não pude deixar de lembrar dessa versão do Clapton. Me lembrei dele também pela paixão que ele nutriu (e curtiu) pela mulher do seu melhor amigo. Mulher de amigo não é homem não...
Desse jeito, coloquei aqui o som do cara. Reparem "aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam"... Como diz Júnior Degani, o homem sabe fazer a guitarra chorar. Quem sabe o som de Clapton se encaixa nas letras do Cabral...
Como um cavaleiro sem armadura, à deriva nos confins de um tempo sem nome, em companhia de todos os sonhos sem datas que nem quem os perdeu já se lembra mais, fui rastejando pelas bordas daquilo que não tem canto nem fronteira. No frio e no escuro dessa película, abafada de qualquer coisa, de coisa nenhuma, eu por ali, esperando sinais e anjos, esperando alguém ir me buscar. Eu na companhia de um relógio que não andava. E por não correr, eu também não passava. Trombado de inércia, tombado de espera, congelado por todos os lados. Mas havia um lugar, e sempre há esse lugar, minha querida, um pedacinho de mim que não quis se esquecer nem se calar, um tantinho assim de memória grudada às artérias do peito, ali, perto daquele pulsar tímido, que me mantinha vivo, lúcido entre delirante e alucinado. E que bom que esse frio que é se esquecer de si não congelou meu coração.
E foi quando encontrei um jeito. Havia encontrado aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam, onde os filmes nos fazem chorar, aquele final de beijo onde os namorados sabem que aconteceram, aquele pegar de mão espontâneo no momento que precede a travessia de uma rua perigosa. Havia encontrado um jeito de me amarrar ao mastro de Ulisses e agora todas as sereias com suas serenatas de morte eram apenas um tapete de rosas por onde deslizava minha nave, minha nau da salvação. E fui, minha querida, fui atravessando tudo aquilo com tanta raiva e com a garganta flamejada de vontade de um grito que nunca antes fora berrado.
Eu na grande viagem de volta. Quanto tempo esperei para que aquela luz que um dia estalou em meu peito, e fugiu, desse a volta em todo o universo e retornasse para me reencontrar. Quanto tempo é preciso se desperdiçar para então quebrar esse ovo de maldades que fazemos com a gente mesmo? Quanto de nós precisa virar pedra e ser enterrado para que um dia possamos virar tesouro e sermos escavados, e achados, e comemorados?
E ia. E já ouvia todos os barulhos de novo, os cheiros que tinha me esquecido, que me faziam arrepiar as entranhas e lubrificar com lágrimas as juntas. E a correr de novo, rápido e sem lugar, a deslizar urgente, mas sem pressa, firme, mas sem mágoa de nada mais. Eu, livre das correntes e dos calabouços. Havia chegado minha luz, meu tempo, e tudo estava claro. A luz da paciência. Como foi doloroso resistir. E como é bom sentir o cheiro da vitória, enfim.
E não era sonho, meu amor. Você nem outros tantos irão acreditar, mas essa é a viagem que demorou tudo, que precisou do Big Bang como centelha de um pavio sem fim, que precisou que do hidrogênio se fizessem os elefantes e os dias tristes de quem já se abandonou mil vezes, mas nunca desistiu. É assim que me sinto agora. Com a sensação de quem pode tocar o todo. E toco. Já não é mais ser a pequena gota misturada ao oceano, mas, antes, o contrário. É sentir todo o sal do mundo temperar as vistas e nem mesmo assim se perder, de tão aqui, de tão presente, de tão você, de tão já. Ah!
O abraço não mais à criança que um dia queremos ser de volta, ou voltar a ser porque ser isso é não ser nada e continuar tendo a desculpa para não ser. Mas o abraço a quem demorou a eternidade para se fazer e chegar, o abraço para quem teve de ver os sóis ficarem velhos e frios e as sondas espaciais jogadas no escuro chorarem de solidão até encontrarem seu abismo ou seu contato, tudo isso para poder dizer que o tempo de crescer e vingar, de se vingar contra o desespero, havia chegado para mim. E quando esse tempo chega, meu amor, você se sente forte demais para não precisar mais bater em ninguém, nem rasgar a si mesmo com suas unhas. E você só olha, só olha, você só olha. E basta. Porque você sabe tanto quanto tudo. Porque você já não precisa saber de nada. E essa sensação, esse prazer é a verdade que fica, que não precisa ser anunciada. É o que sobra e que só não é tudo porque tudo já é ela. É quando você se pega se sentindo sendo.
É por isso que agora, durante as noites, minha alma vira esse anjo, esse cavaleiro com asas. E quando ela sai do meu corpo para cumprir sua missão, sonho os desastres e os pesadelos de fim de mundo. É porque minha alma nestas horas está longe, pingando sua promessa de amor em outras almas solitárias, indo àquele confim buscar outros perdidos, àquele lugar que por tantos dias ela também já esteve. Indo buscar no abandono um jeito de resistir e dar conta, buscar aquele estalo que temos quando nos vemos no espelho e não arrumamos a franja, só as malas para partir para a grande viagem de ter visto pelo menos uma vez nosso próprio rosto sorrir de verdade, de ter redescoberto o amor por si mesmo. Tudo enquanto durmo, e os boêmios fazem sua poesia, e os poetas deitam suas espadas.
Enquanto meu espírito se esvazia no mundo de tão cheio, durmo e te encontro em outro lugar, onde nossos sonhos contam as coisas de trás para frente, do avesso e de cabeça para baixo e tudo sempre termina num beijo. E de manhã, quando abro os olhos, estou oco, mas preparado para o retorno daquela grande ave que volta quando o sol raia e entra em mim com tanta força que é por isso que fico a te olhar na cama com os olhos de quem já fez todas as viagens, arrebatado com tudo porque tudo diz respeito ao jeito com que te olho e te quero. E minha alma, esse anjo cavaleiro, volta para mim e eu volto para você.
Tive que percorrer toda a história, toda a distância das galáxias na velocidade de todas as angústias para chegar a este dia de hoje e te dizer, e me dizer: finalmente. Eu consegui. Nós conseguimos. Já não faz mais sentido combater a tristeza com alegria, não é preciso mais regar as trevas com esta luz nem salpicar sorrisos nas feridas, porque já não existe nada para trás. Porque já não existe nada antes de você e de nós dois juntos assim.
E é assim. Finalmente, minha querida. Finalmente o amor. Porque o amor é essa chance, o amor é essa paciência, único jeito de resistir, o amor é o que faz a luz fazer a curva e voltar. O amor é esse barco que vem nos salvar. O amor, amor da minha vida. Finalmente o vejo do cais. Ele chegou. Finalmente.
Renato Cabral
Desse jeito, coloquei aqui o som do cara. Reparem "aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam"... Como diz Júnior Degani, o homem sabe fazer a guitarra chorar. Quem sabe o som de Clapton se encaixa nas letras do Cabral...
Como um cavaleiro sem armadura, à deriva nos confins de um tempo sem nome, em companhia de todos os sonhos sem datas que nem quem os perdeu já se lembra mais, fui rastejando pelas bordas daquilo que não tem canto nem fronteira. No frio e no escuro dessa película, abafada de qualquer coisa, de coisa nenhuma, eu por ali, esperando sinais e anjos, esperando alguém ir me buscar. Eu na companhia de um relógio que não andava. E por não correr, eu também não passava. Trombado de inércia, tombado de espera, congelado por todos os lados. Mas havia um lugar, e sempre há esse lugar, minha querida, um pedacinho de mim que não quis se esquecer nem se calar, um tantinho assim de memória grudada às artérias do peito, ali, perto daquele pulsar tímido, que me mantinha vivo, lúcido entre delirante e alucinado. E que bom que esse frio que é se esquecer de si não congelou meu coração.
E foi quando encontrei um jeito. Havia encontrado aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam, onde os filmes nos fazem chorar, aquele final de beijo onde os namorados sabem que aconteceram, aquele pegar de mão espontâneo no momento que precede a travessia de uma rua perigosa. Havia encontrado um jeito de me amarrar ao mastro de Ulisses e agora todas as sereias com suas serenatas de morte eram apenas um tapete de rosas por onde deslizava minha nave, minha nau da salvação. E fui, minha querida, fui atravessando tudo aquilo com tanta raiva e com a garganta flamejada de vontade de um grito que nunca antes fora berrado.
Eu na grande viagem de volta. Quanto tempo esperei para que aquela luz que um dia estalou em meu peito, e fugiu, desse a volta em todo o universo e retornasse para me reencontrar. Quanto tempo é preciso se desperdiçar para então quebrar esse ovo de maldades que fazemos com a gente mesmo? Quanto de nós precisa virar pedra e ser enterrado para que um dia possamos virar tesouro e sermos escavados, e achados, e comemorados?
E ia. E já ouvia todos os barulhos de novo, os cheiros que tinha me esquecido, que me faziam arrepiar as entranhas e lubrificar com lágrimas as juntas. E a correr de novo, rápido e sem lugar, a deslizar urgente, mas sem pressa, firme, mas sem mágoa de nada mais. Eu, livre das correntes e dos calabouços. Havia chegado minha luz, meu tempo, e tudo estava claro. A luz da paciência. Como foi doloroso resistir. E como é bom sentir o cheiro da vitória, enfim.
E não era sonho, meu amor. Você nem outros tantos irão acreditar, mas essa é a viagem que demorou tudo, que precisou do Big Bang como centelha de um pavio sem fim, que precisou que do hidrogênio se fizessem os elefantes e os dias tristes de quem já se abandonou mil vezes, mas nunca desistiu. É assim que me sinto agora. Com a sensação de quem pode tocar o todo. E toco. Já não é mais ser a pequena gota misturada ao oceano, mas, antes, o contrário. É sentir todo o sal do mundo temperar as vistas e nem mesmo assim se perder, de tão aqui, de tão presente, de tão você, de tão já. Ah!
O abraço não mais à criança que um dia queremos ser de volta, ou voltar a ser porque ser isso é não ser nada e continuar tendo a desculpa para não ser. Mas o abraço a quem demorou a eternidade para se fazer e chegar, o abraço para quem teve de ver os sóis ficarem velhos e frios e as sondas espaciais jogadas no escuro chorarem de solidão até encontrarem seu abismo ou seu contato, tudo isso para poder dizer que o tempo de crescer e vingar, de se vingar contra o desespero, havia chegado para mim. E quando esse tempo chega, meu amor, você se sente forte demais para não precisar mais bater em ninguém, nem rasgar a si mesmo com suas unhas. E você só olha, só olha, você só olha. E basta. Porque você sabe tanto quanto tudo. Porque você já não precisa saber de nada. E essa sensação, esse prazer é a verdade que fica, que não precisa ser anunciada. É o que sobra e que só não é tudo porque tudo já é ela. É quando você se pega se sentindo sendo.
É por isso que agora, durante as noites, minha alma vira esse anjo, esse cavaleiro com asas. E quando ela sai do meu corpo para cumprir sua missão, sonho os desastres e os pesadelos de fim de mundo. É porque minha alma nestas horas está longe, pingando sua promessa de amor em outras almas solitárias, indo àquele confim buscar outros perdidos, àquele lugar que por tantos dias ela também já esteve. Indo buscar no abandono um jeito de resistir e dar conta, buscar aquele estalo que temos quando nos vemos no espelho e não arrumamos a franja, só as malas para partir para a grande viagem de ter visto pelo menos uma vez nosso próprio rosto sorrir de verdade, de ter redescoberto o amor por si mesmo. Tudo enquanto durmo, e os boêmios fazem sua poesia, e os poetas deitam suas espadas.
Enquanto meu espírito se esvazia no mundo de tão cheio, durmo e te encontro em outro lugar, onde nossos sonhos contam as coisas de trás para frente, do avesso e de cabeça para baixo e tudo sempre termina num beijo. E de manhã, quando abro os olhos, estou oco, mas preparado para o retorno daquela grande ave que volta quando o sol raia e entra em mim com tanta força que é por isso que fico a te olhar na cama com os olhos de quem já fez todas as viagens, arrebatado com tudo porque tudo diz respeito ao jeito com que te olho e te quero. E minha alma, esse anjo cavaleiro, volta para mim e eu volto para você.
Tive que percorrer toda a história, toda a distância das galáxias na velocidade de todas as angústias para chegar a este dia de hoje e te dizer, e me dizer: finalmente. Eu consegui. Nós conseguimos. Já não faz mais sentido combater a tristeza com alegria, não é preciso mais regar as trevas com esta luz nem salpicar sorrisos nas feridas, porque já não existe nada para trás. Porque já não existe nada antes de você e de nós dois juntos assim.
E é assim. Finalmente, minha querida. Finalmente o amor. Porque o amor é essa chance, o amor é essa paciência, único jeito de resistir, o amor é o que faz a luz fazer a curva e voltar. O amor é esse barco que vem nos salvar. O amor, amor da minha vida. Finalmente o vejo do cais. Ele chegou. Finalmente.
Renato Cabral
segunda-feira, junho 20, 2011
Dá-me a tua mão
Dá-me a tua mão.
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.
Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.
José Gomes Ferreira
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.
Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.
José Gomes Ferreira
sexta-feira, junho 17, 2011
Lover You Should Have Come Over
Poucas músicas têm a emoção das músicas desse cara, que se foi muito cedo.
quinta-feira, junho 16, 2011
Campos de concentração são mais bonitos de mãos dadas - por Renato Cabral
Não é que tem caminho mais difícil. Tem caminhos desconhecidos. Então, difíceis. Então, misteriosos. Então, lindos.
Naquele dia, quando li a frase mais triste de toda a Filosofia, tive que aceitar o que passamos a vida evitando olhar. Mas eu só tinha 14 anos e ainda não sabia que toda aquela dor e vazio eram ainda piores quando tudo crescesse e eu ficasse menor com a idade. Porque essa é a melhor imagem da vida adulta: sobre como nos apequenamos diante dos infortúnios. E foi naquele mesmo dia que fui arrastado para o campo de concentração. Mas, infelizmente, não havia inimigo presente para o qual levantar minha espada e resistir; e toda violência era um tapa que só doía por dentro. Um dia te falei que só há uma história que vale a pena ser contada: a nossa. Estava errado. Por isso hoje quero contar uma outra, que não é minha nem sua, apesar de a termos feita juntos. Ela fala como mesmo nos campos de concentração ainda podemos ser felizes. Nem todos conseguem, assim como não são todas as flores que dão a sorte de serem encontradas…
São nos momentos que precedem os desastres que podemos ver as coisas essenciais. E porque você estava do lado de fora, pude te ver. Sei disso, porque foi quando tudo virou silêncio e até os vendedores de chicletes da rua pararam de assobiar. Eu como mais um na fila, como o ruminante a espera do abate. E, que ironia, logo aquela fila, o pior lugar para quem tem urgência e pressa, foi o nosso começo.
Eu com um ingresso sobrando. Preso. Você do lado de lá da cerca, sem entradas. Mas livre. Eu, um refugiado, a caminho de menos um dia. Você, minha cruz vermelha, na luta por mais um, por salvar mais um. E quando nos olhamos pela primeira vez, foi quando pudemos trocar o que tínhamos sobrando. Eu, minha alma, meu pedido de ajuda. Você, sua liberdade. Porque começava ali, sem a gente suspeitar, a nossa história e o nosso amor. E que bom que o preço de amar não é deixar de ser livre, mas deixar de se importar com isso.
E te pergunto, por quê? Porque a mim, que não tinha escapatória, restavam as câmeras de gás. Mas a você que tinha tudo, podia ter fugido, mas me deu a mão e abriu mão de tanto para estar comigo ali…
Até aquele dia, até você chegar – e só fui saber disso agora – achava que a vida me teria como o grande desperdiçado, mais um filho que não deu certo, que quase vingou, mas tombou em vão. Como a eterna criança que por ter brincado demais levou a sério seu tabuleiro imaginário e a brincadeira perdeu a graça. Mas que bom saber que a única coisa em vão é mesmo a saudade com que lembramos da gente no passado, sempre achando que éramos melhores. Não somos.
Até aquele dia, hoje sei, me faltava saber olhar para as coisas simples e para as responsabilidades que podem, sim, trazer coisas grandes. Por não querer crescer, nunca pude aprender o que a vida adulta e madura poderia me dar. E recusei ser livre. Troquei minha liberdade pela má-fé nas filas. Eu cheio da companhia de outros vazios ao meu lado. É muito bom ser criança e brincar, mas é muito melhor ser grande e poder olhar mais longe e ir mais longe, além daquele pequeno parquinho de areia onde nos distraímos com nossa suposta ingenuidade.
Até aquele dia, achava que entrar nos campos de concentração não era uma questão de escolha. E não é mesmo. Mas a gente pode entrar de mãos dadas. A vida num campo de concentração já é por demais dura e difícil mesmo com nossa imaginação. Mas seria impossível sem um amor para nos salvar.
Você me salvou e nunca soube disso, porque nem eu sabia ao certo o que era aquela sensação que eu sentia ao estar de pé ao seu lado. Eu, pleno, eufórico, tímido com meu próprio bem-estar, envergonhado como se a felicidade fosse uma doença perigosa. Eu, um vira-latas que encontrou seu banquete, sua desforra, seu tempo de uivar de novo para a Lua que já habitava em mim. Eu, desconcertantemente cheio de luz, iluminado pelo seu sorriso. E triste por saber que todos nós podemos vibrar assim, mas poucos alcançam isso. E contente de saber que um alcançou. E sem palavras quando pude perceber que este homem era eu. Pelo menos uma vez na vida. Pelo menos por um instante fui eu. E naquela hora, sorri como em nenhum outro dia. E chorei como em nenhuma outra vez.
Que bom não termos nos perdido no meio da multidão. Quando me lembro dos sonhos do fim do mundo, agradeço por eles terem sido apenas o prenúncio ao contrário das coisas maravilhosas que iríamos viver. E se acabasse agora, saiba. Foram apenas alguns meses. Mas foram meus melhores meses. E porque a vida é por demais um campo de concentração onde empilhamos desastres e dessabores, onde nos empenhos em achar sentido para nossa existência, pude achar em você meu motivo para resistir. Enfim, já podia aceitar que cresci.
E agora, mais uma vez, me recordo daquela frase que foi o passaporte para ver o infortúnio que pode ser tudo isso ao nosso redor: “A vida é como um pêndulo, oscilando da direta para a esquerda, da falta ao tédio, sem nunca cessar”. Quem disse isso foi Schopenhauer. Ele não estava errado. Mas hoje, só hoje, como num milagre, contrariando toda a lógica, prefiro relembrar aquele filme que um dia vimos juntos e que termina assim: “essa parte da minha vida, essa pequena parte se chama felicidade.” Então, vamos aproveitar, minha querida, antes que o pêndulo volte a oscilar.
Ps. Me tornei homem aos 31 anos. Como demorou. E depois que esse dia chegou, pude ver o mais importante: saber olhar para trás e para tudo antes de hoje com a maior das gratidões. Porque tudo me levou àquele dia, àquela fila e se eu não tivesse entrado nela, não teria te encontrado. Que bom que você me tirou da fila. Que bom que você aceitou meu ingresso.
Renato Cabral
Naquele dia, quando li a frase mais triste de toda a Filosofia, tive que aceitar o que passamos a vida evitando olhar. Mas eu só tinha 14 anos e ainda não sabia que toda aquela dor e vazio eram ainda piores quando tudo crescesse e eu ficasse menor com a idade. Porque essa é a melhor imagem da vida adulta: sobre como nos apequenamos diante dos infortúnios. E foi naquele mesmo dia que fui arrastado para o campo de concentração. Mas, infelizmente, não havia inimigo presente para o qual levantar minha espada e resistir; e toda violência era um tapa que só doía por dentro. Um dia te falei que só há uma história que vale a pena ser contada: a nossa. Estava errado. Por isso hoje quero contar uma outra, que não é minha nem sua, apesar de a termos feita juntos. Ela fala como mesmo nos campos de concentração ainda podemos ser felizes. Nem todos conseguem, assim como não são todas as flores que dão a sorte de serem encontradas…
São nos momentos que precedem os desastres que podemos ver as coisas essenciais. E porque você estava do lado de fora, pude te ver. Sei disso, porque foi quando tudo virou silêncio e até os vendedores de chicletes da rua pararam de assobiar. Eu como mais um na fila, como o ruminante a espera do abate. E, que ironia, logo aquela fila, o pior lugar para quem tem urgência e pressa, foi o nosso começo.
Eu com um ingresso sobrando. Preso. Você do lado de lá da cerca, sem entradas. Mas livre. Eu, um refugiado, a caminho de menos um dia. Você, minha cruz vermelha, na luta por mais um, por salvar mais um. E quando nos olhamos pela primeira vez, foi quando pudemos trocar o que tínhamos sobrando. Eu, minha alma, meu pedido de ajuda. Você, sua liberdade. Porque começava ali, sem a gente suspeitar, a nossa história e o nosso amor. E que bom que o preço de amar não é deixar de ser livre, mas deixar de se importar com isso.
E te pergunto, por quê? Porque a mim, que não tinha escapatória, restavam as câmeras de gás. Mas a você que tinha tudo, podia ter fugido, mas me deu a mão e abriu mão de tanto para estar comigo ali…
Até aquele dia, até você chegar – e só fui saber disso agora – achava que a vida me teria como o grande desperdiçado, mais um filho que não deu certo, que quase vingou, mas tombou em vão. Como a eterna criança que por ter brincado demais levou a sério seu tabuleiro imaginário e a brincadeira perdeu a graça. Mas que bom saber que a única coisa em vão é mesmo a saudade com que lembramos da gente no passado, sempre achando que éramos melhores. Não somos.
Até aquele dia, hoje sei, me faltava saber olhar para as coisas simples e para as responsabilidades que podem, sim, trazer coisas grandes. Por não querer crescer, nunca pude aprender o que a vida adulta e madura poderia me dar. E recusei ser livre. Troquei minha liberdade pela má-fé nas filas. Eu cheio da companhia de outros vazios ao meu lado. É muito bom ser criança e brincar, mas é muito melhor ser grande e poder olhar mais longe e ir mais longe, além daquele pequeno parquinho de areia onde nos distraímos com nossa suposta ingenuidade.
Até aquele dia, achava que entrar nos campos de concentração não era uma questão de escolha. E não é mesmo. Mas a gente pode entrar de mãos dadas. A vida num campo de concentração já é por demais dura e difícil mesmo com nossa imaginação. Mas seria impossível sem um amor para nos salvar.
Você me salvou e nunca soube disso, porque nem eu sabia ao certo o que era aquela sensação que eu sentia ao estar de pé ao seu lado. Eu, pleno, eufórico, tímido com meu próprio bem-estar, envergonhado como se a felicidade fosse uma doença perigosa. Eu, um vira-latas que encontrou seu banquete, sua desforra, seu tempo de uivar de novo para a Lua que já habitava em mim. Eu, desconcertantemente cheio de luz, iluminado pelo seu sorriso. E triste por saber que todos nós podemos vibrar assim, mas poucos alcançam isso. E contente de saber que um alcançou. E sem palavras quando pude perceber que este homem era eu. Pelo menos uma vez na vida. Pelo menos por um instante fui eu. E naquela hora, sorri como em nenhum outro dia. E chorei como em nenhuma outra vez.
Que bom não termos nos perdido no meio da multidão. Quando me lembro dos sonhos do fim do mundo, agradeço por eles terem sido apenas o prenúncio ao contrário das coisas maravilhosas que iríamos viver. E se acabasse agora, saiba. Foram apenas alguns meses. Mas foram meus melhores meses. E porque a vida é por demais um campo de concentração onde empilhamos desastres e dessabores, onde nos empenhos em achar sentido para nossa existência, pude achar em você meu motivo para resistir. Enfim, já podia aceitar que cresci.
E agora, mais uma vez, me recordo daquela frase que foi o passaporte para ver o infortúnio que pode ser tudo isso ao nosso redor: “A vida é como um pêndulo, oscilando da direta para a esquerda, da falta ao tédio, sem nunca cessar”. Quem disse isso foi Schopenhauer. Ele não estava errado. Mas hoje, só hoje, como num milagre, contrariando toda a lógica, prefiro relembrar aquele filme que um dia vimos juntos e que termina assim: “essa parte da minha vida, essa pequena parte se chama felicidade.” Então, vamos aproveitar, minha querida, antes que o pêndulo volte a oscilar.
Ps. Me tornei homem aos 31 anos. Como demorou. E depois que esse dia chegou, pude ver o mais importante: saber olhar para trás e para tudo antes de hoje com a maior das gratidões. Porque tudo me levou àquele dia, àquela fila e se eu não tivesse entrado nela, não teria te encontrado. Que bom que você me tirou da fila. Que bom que você aceitou meu ingresso.
Renato Cabral
segunda-feira, junho 13, 2011
Noites azuis
Pelas noites azuis de verão, irei em atalhos sob a lua,
Picotado pelos trigos, pisar a grama pequena:
Sonhador, sentirei nos pés o frescor que acena.
Deixarei o vento banhar minha cabeça nua.
Não falarei, não pensarei em nada sequer:
Mas me subirá na alma o amor soberano,
E irei longe, bem longe, feito um cigano,
Pela Natureza — feliz como se estivesse com uma mulher.
Arthur Rimbaud
Picotado pelos trigos, pisar a grama pequena:
Sonhador, sentirei nos pés o frescor que acena.
Deixarei o vento banhar minha cabeça nua.
Não falarei, não pensarei em nada sequer:
Mas me subirá na alma o amor soberano,
E irei longe, bem longe, feito um cigano,
Pela Natureza — feliz como se estivesse com uma mulher.
Arthur Rimbaud
quinta-feira, junho 09, 2011
Sapatênis: ou o meu pedido de demissão - por Renato Cabral
Quem sente náuseas ao ouvir a musiquinha do Fantástico às vésperas de uma segunda-feira?
Achei que dava para suportar sem minha caderneta de frases inoportunas, sem os tapas e pontapés, que me deixavam feio, mas me defendiam. Pensei que se não abrisse a janela do departamento, estaria livre das ruas que não visitei, das mulheres que não provei. Daí, aceitei a ideia de que a velha ideia de ir de Lhasa a Kathmandu pedalando poderia esperar. Esperar talvez até que o câncer viesse primeiro, ou o primeiro infarto. Porque para toda inação ou falso desconsolo é preciso uma alavanca e um martelo para nos tirar do lugar.
E foi quando assinaram minha carteira. Tirei uma foto sorrindo, ganhei um canto na cela. Segui o horário, atento para atrasos menores que 15 minutos e no lanche comi pão com manteiga. Achei gostoso. De mentira. Falei mal de alguns perto do bebedouro. De verdade. Respondi a todo bom-dia com um sorriso carregado. Dei abraços demorados nos que faziam aniversário. Achei que, compartilhando as pequenas coisas que enchem um dia de migalhas, estaria com eles e o tempo passaria mais rápido. E passou mesmo.
Depois das dezoito, o aperto no peito cedia. Mas era leveza de vazio, de quem havia jogado sua arca de ouro no mar e ficado mais pobre que antes. No domingo, o aperto apertava de novo. O dia de folga para chorar a falta do que fazer estava acabando. E me lembrava dos poucos feriados do ano, a oferta de esmola para as almas miseráveis. E pensava nas férias, aquela ponte aérea que achamos que nos levará à felicidade. A passagem dividida em 12x no cartão.
E começava de novo, porque todo dia é uma segunda-feira para quem bate pedras ou bate o cartão. Alguns por ali ainda resistindo em círculos, como um bicho na gaiola. Outros com o mesmo olhar de “tanto faz” que já pesava meus cílios. Eu sem ser bom o bastante, ali também; mais um a colaborar com a atuação dos amolecidos, a sentir o cabresto como os equinos. Minha má-fé voluntária virou dor nas juntas e passou a arder na hora de ir para casa. Era a artrite provocada pelo auto-vodu.
Nada ajudava. Nem o self-service da esquina com sua sobremesa grátis, nem os chocolates dos dias de comemoração. Aí, nessas horas, pulava do barco e tentava mergulhar fundo, voltar para aquele lugar que um dia teve nome e não precisava esperar a folha de pagamento do dia 10 para sorrir porque paguei as contas sem juros. Mas não tinha o mesmo fôlego. E a verdade é que a poltrona já tinha as minhas curvas e o teclado a poeira dos meus dedos. No reflexo das águas, ou do monitor, a silhueta de um homem sem rosto, náufrago afogado de olhos acorrentados. Minha vontade resumida a levar o dedo ao controle do ar condicionado e gelar o ambiente seco como nossos olhos.
Então entendi que coragem e aventura são coisas para quem só morre uma vez. Nós, o povo bunda, morremos demais; a cada dia um tanto assim. Mas sem dor, tediosamente devagar. Não bastasse o peso do crachá, passei a arrastar uma vitrola de lamentações, que anunciava um cadáver cada dia menos adiado. Eu como o alterego dos armários de aço.
Daí, quando as pessoas se concentravam na sua atuação, na sua enganação, e tudo era silêncio, me lembrava que conheci homens autênticos, os que nunca morrem. Para eles, quando o fim chega, já não podem experimentar a morte. Porque quando ela está, eles já partiram. Para eles, morrer é sempre a morte dos outros. Para os amarelões, a morte vem em forma de um tapa nas costas, ou de um pequeno elogio no fim do expediente; é o pouco de grama necessária para os ruminantes mascarem seu autoengano e babarem seu desespero sem reclamar do engarrafamento até a praia.
Um dia a jaboticabeira lá do fundo do quintal vingou e me peguei sorrindo até a metade, em meio ao trabalho, no meio do dia, com o café morno nas mãos. Aquela bolota preta me lembrou que eu tinha passado a pintar os cabelos. Aquela bolota preta me lembrou que agora eu usava 44 e já não tinha mais 20.
Às vezes falava alto na sala. Eles achavam que era carência, exibicionismo, falta de prudência. Mas era eu gritando para meu outro, aquele que me esperava no portão de saída e não entrava comigo. Era meu teatro de pânico, meu deboche que sempre me deu a muleta para tirar a cara da lama. Eu, que sempre fui egoísta, esqueci que isso era o que me salvava da mesmice, era minha cerca contra as ovelhas que às vezes são mais perigosas que os lobos.
Nas comemorações de resultados, via cada um sugando do delírio do outro um motivo para acordar de novo. Estavam embriagados como nunca fui. Hipnotizados como nunca fiquei. Pareciam imersos numa ignorância libertadora. Mas a verdade é que todos tinham no olhar a cumplicidade de saber de sua mentira. Isso nos unia. Vivíamos como todo mundo vive, porque a mediocridade não torna mesmo ninguém melhor que ninguém.
E assim era o dia de todos por ali. Faltava aquele remédio para suportar o tédio: apatia ou uma escopeta. Assim, amanhã, às oito, nosso tempo estará contado; nosso corpo se revirando no mesmo lugar e o olhar perdido, o meu apontando para o Himalaia. E, que ironia, às vezes me sobra dinheiro no fim do mês. Comprarei um sapatênis. Irei com ele no próximo happy hour.
Por Renato Cabral
Achei que dava para suportar sem minha caderneta de frases inoportunas, sem os tapas e pontapés, que me deixavam feio, mas me defendiam. Pensei que se não abrisse a janela do departamento, estaria livre das ruas que não visitei, das mulheres que não provei. Daí, aceitei a ideia de que a velha ideia de ir de Lhasa a Kathmandu pedalando poderia esperar. Esperar talvez até que o câncer viesse primeiro, ou o primeiro infarto. Porque para toda inação ou falso desconsolo é preciso uma alavanca e um martelo para nos tirar do lugar.
E foi quando assinaram minha carteira. Tirei uma foto sorrindo, ganhei um canto na cela. Segui o horário, atento para atrasos menores que 15 minutos e no lanche comi pão com manteiga. Achei gostoso. De mentira. Falei mal de alguns perto do bebedouro. De verdade. Respondi a todo bom-dia com um sorriso carregado. Dei abraços demorados nos que faziam aniversário. Achei que, compartilhando as pequenas coisas que enchem um dia de migalhas, estaria com eles e o tempo passaria mais rápido. E passou mesmo.
Depois das dezoito, o aperto no peito cedia. Mas era leveza de vazio, de quem havia jogado sua arca de ouro no mar e ficado mais pobre que antes. No domingo, o aperto apertava de novo. O dia de folga para chorar a falta do que fazer estava acabando. E me lembrava dos poucos feriados do ano, a oferta de esmola para as almas miseráveis. E pensava nas férias, aquela ponte aérea que achamos que nos levará à felicidade. A passagem dividida em 12x no cartão.
E começava de novo, porque todo dia é uma segunda-feira para quem bate pedras ou bate o cartão. Alguns por ali ainda resistindo em círculos, como um bicho na gaiola. Outros com o mesmo olhar de “tanto faz” que já pesava meus cílios. Eu sem ser bom o bastante, ali também; mais um a colaborar com a atuação dos amolecidos, a sentir o cabresto como os equinos. Minha má-fé voluntária virou dor nas juntas e passou a arder na hora de ir para casa. Era a artrite provocada pelo auto-vodu.
Nada ajudava. Nem o self-service da esquina com sua sobremesa grátis, nem os chocolates dos dias de comemoração. Aí, nessas horas, pulava do barco e tentava mergulhar fundo, voltar para aquele lugar que um dia teve nome e não precisava esperar a folha de pagamento do dia 10 para sorrir porque paguei as contas sem juros. Mas não tinha o mesmo fôlego. E a verdade é que a poltrona já tinha as minhas curvas e o teclado a poeira dos meus dedos. No reflexo das águas, ou do monitor, a silhueta de um homem sem rosto, náufrago afogado de olhos acorrentados. Minha vontade resumida a levar o dedo ao controle do ar condicionado e gelar o ambiente seco como nossos olhos.
Então entendi que coragem e aventura são coisas para quem só morre uma vez. Nós, o povo bunda, morremos demais; a cada dia um tanto assim. Mas sem dor, tediosamente devagar. Não bastasse o peso do crachá, passei a arrastar uma vitrola de lamentações, que anunciava um cadáver cada dia menos adiado. Eu como o alterego dos armários de aço.
Daí, quando as pessoas se concentravam na sua atuação, na sua enganação, e tudo era silêncio, me lembrava que conheci homens autênticos, os que nunca morrem. Para eles, quando o fim chega, já não podem experimentar a morte. Porque quando ela está, eles já partiram. Para eles, morrer é sempre a morte dos outros. Para os amarelões, a morte vem em forma de um tapa nas costas, ou de um pequeno elogio no fim do expediente; é o pouco de grama necessária para os ruminantes mascarem seu autoengano e babarem seu desespero sem reclamar do engarrafamento até a praia.
Um dia a jaboticabeira lá do fundo do quintal vingou e me peguei sorrindo até a metade, em meio ao trabalho, no meio do dia, com o café morno nas mãos. Aquela bolota preta me lembrou que eu tinha passado a pintar os cabelos. Aquela bolota preta me lembrou que agora eu usava 44 e já não tinha mais 20.
Às vezes falava alto na sala. Eles achavam que era carência, exibicionismo, falta de prudência. Mas era eu gritando para meu outro, aquele que me esperava no portão de saída e não entrava comigo. Era meu teatro de pânico, meu deboche que sempre me deu a muleta para tirar a cara da lama. Eu, que sempre fui egoísta, esqueci que isso era o que me salvava da mesmice, era minha cerca contra as ovelhas que às vezes são mais perigosas que os lobos.
Nas comemorações de resultados, via cada um sugando do delírio do outro um motivo para acordar de novo. Estavam embriagados como nunca fui. Hipnotizados como nunca fiquei. Pareciam imersos numa ignorância libertadora. Mas a verdade é que todos tinham no olhar a cumplicidade de saber de sua mentira. Isso nos unia. Vivíamos como todo mundo vive, porque a mediocridade não torna mesmo ninguém melhor que ninguém.
E assim era o dia de todos por ali. Faltava aquele remédio para suportar o tédio: apatia ou uma escopeta. Assim, amanhã, às oito, nosso tempo estará contado; nosso corpo se revirando no mesmo lugar e o olhar perdido, o meu apontando para o Himalaia. E, que ironia, às vezes me sobra dinheiro no fim do mês. Comprarei um sapatênis. Irei com ele no próximo happy hour.
Por Renato Cabral
quarta-feira, junho 08, 2011
quinta-feira, junho 02, 2011
Canção
Tanto o amor me manteve acorrentado
e acostumado à sua serventia,
que o peso que no peito eu conhecia
hoje em leveza vejo transformado.
Porém amor, de forças renovado,
me toma o espírito e me silencia
e minh’alma em doçura delicia
e sem cores me deixa desmaiado.
Depois ele retoma seu poder
e faz com que os espíritos em bando
saiam todos, chamando
a minha dama por me socorrer.
É o que me ocorre ao vê-la e me domina
tanto, que coisa igual não se imagina.
Dante Alighieri
e acostumado à sua serventia,
que o peso que no peito eu conhecia
hoje em leveza vejo transformado.
Porém amor, de forças renovado,
me toma o espírito e me silencia
e minh’alma em doçura delicia
e sem cores me deixa desmaiado.
Depois ele retoma seu poder
e faz com que os espíritos em bando
saiam todos, chamando
a minha dama por me socorrer.
É o que me ocorre ao vê-la e me domina
tanto, que coisa igual não se imagina.
Dante Alighieri
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