terça-feira, junho 21, 2011

Finalmente - por Renato Cabral

Quando li a parte que o Cabral diz "aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam", não pude deixar de lembrar dessa versão do Clapton. Me lembrei dele também pela paixão que ele nutriu (e curtiu) pela mulher do seu melhor amigo. Mulher de amigo não é homem não...

Desse jeito, coloquei aqui o som do cara. Reparem "aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam"... Como diz Júnior Degani, o homem sabe fazer a guitarra chorar. Quem sabe o som de Clapton se encaixa nas letras do Cabral...



Como um cavaleiro sem armadura, à deriva nos confins de um tempo sem nome, em companhia de todos os sonhos sem datas que nem quem os perdeu já se lembra mais, fui rastejando pelas bordas daquilo que não tem canto nem fronteira. No frio e no escuro dessa película, abafada de qualquer coisa, de coisa nenhuma, eu por ali, esperando sinais e anjos, esperando alguém ir me buscar. Eu na companhia de um relógio que não andava. E por não correr, eu também não passava. Trombado de inércia, tombado de espera, congelado por todos os lados. Mas havia um lugar, e sempre há esse lugar, minha querida, um pedacinho de mim que não quis se esquecer nem se calar, um tantinho assim de memória grudada às artérias do peito, ali, perto daquele pulsar tímido, que me mantinha vivo, lúcido entre delirante e alucinado. E que bom que esse frio que é se esquecer de si não congelou meu coração.

E foi quando encontrei um jeito. Havia encontrado aquele final de música onde os guitarristas nos arrebatam, onde os filmes nos fazem chorar, aquele final de beijo onde os namorados sabem que aconteceram, aquele pegar de mão espontâneo no momento que precede a travessia de uma rua perigosa. Havia encontrado um jeito de me amarrar ao mastro de Ulisses e agora todas as sereias com suas serenatas de morte eram apenas um tapete de rosas por onde deslizava minha nave, minha nau da salvação. E fui, minha querida, fui atravessando tudo aquilo com tanta raiva e com a garganta flamejada de vontade de um grito que nunca antes fora berrado.

Eu na grande viagem de volta. Quanto tempo esperei para que aquela luz que um dia estalou em meu peito, e fugiu, desse a volta em todo o universo e retornasse para me reencontrar. Quanto tempo é preciso se desperdiçar para então quebrar esse ovo de maldades que fazemos com a gente mesmo? Quanto de nós precisa virar pedra e ser enterrado para que um dia possamos virar tesouro e sermos escavados, e achados, e comemorados?

E ia. E já ouvia todos os barulhos de novo, os cheiros que tinha me esquecido, que me faziam arrepiar as entranhas e lubrificar com lágrimas as juntas. E a correr de novo, rápido e sem lugar, a deslizar urgente, mas sem pressa, firme, mas sem mágoa de nada mais. Eu, livre das correntes e dos calabouços. Havia chegado minha luz, meu tempo, e tudo estava claro. A luz da paciência. Como foi doloroso resistir. E como é bom sentir o cheiro da vitória, enfim.

E não era sonho, meu amor. Você nem outros tantos irão acreditar, mas essa é a viagem que demorou tudo, que precisou do Big Bang como centelha de um pavio sem fim, que precisou que do hidrogênio se fizessem os elefantes e os dias tristes de quem já se abandonou mil vezes, mas nunca desistiu. É assim que me sinto agora. Com a sensação de quem pode tocar o todo. E toco. Já não é mais ser a pequena gota misturada ao oceano, mas, antes, o contrário. É sentir todo o sal do mundo temperar as vistas e nem mesmo assim se perder, de tão aqui, de tão presente, de tão você, de tão já. Ah!

O abraço não mais à criança que um dia queremos ser de volta, ou voltar a ser porque ser isso é não ser nada e continuar tendo a desculpa para não ser. Mas o abraço a quem demorou a eternidade para se fazer e chegar, o abraço para quem teve de ver os sóis ficarem velhos e frios e as sondas espaciais jogadas no escuro chorarem de solidão até encontrarem seu abismo ou seu contato, tudo isso para poder dizer que o tempo de crescer e vingar, de se vingar contra o desespero, havia chegado para mim. E quando esse tempo chega, meu amor, você se sente forte demais para não precisar mais bater em ninguém, nem rasgar a si mesmo com suas unhas. E você só olha, só olha, você só olha. E basta. Porque você sabe tanto quanto tudo. Porque você já não precisa saber de nada. E essa sensação, esse prazer é a verdade que fica, que não precisa ser anunciada. É o que sobra e que só não é tudo porque tudo já é ela. É quando você se pega se sentindo sendo.

É por isso que agora, durante as noites, minha alma vira esse anjo, esse cavaleiro com asas. E quando ela sai do meu corpo para cumprir sua missão, sonho os desastres e os pesadelos de fim de mundo. É porque minha alma nestas horas está longe, pingando sua promessa de amor em outras almas solitárias, indo àquele confim buscar outros perdidos, àquele lugar que por tantos dias ela também já esteve. Indo buscar no abandono um jeito de resistir e dar conta, buscar aquele estalo que temos quando nos vemos no espelho e não arrumamos a franja, só as malas para partir para a grande viagem de ter visto pelo menos uma vez nosso próprio rosto sorrir de verdade, de ter redescoberto o amor por si mesmo. Tudo enquanto durmo, e os boêmios fazem sua poesia, e os poetas deitam suas espadas.

Enquanto meu espírito se esvazia no mundo de tão cheio, durmo e te encontro em outro lugar, onde nossos sonhos contam as coisas de trás para frente, do avesso e de cabeça para baixo e tudo sempre termina num beijo. E de manhã, quando abro os olhos, estou oco, mas preparado para o retorno daquela grande ave que volta quando o sol raia e entra em mim com tanta força que é por isso que fico a te olhar na cama com os olhos de quem já fez todas as viagens, arrebatado com tudo porque tudo diz respeito ao jeito com que te olho e te quero. E minha alma, esse anjo cavaleiro, volta para mim e eu volto para você.

Tive que percorrer toda a história, toda a distância das galáxias na velocidade de todas as angústias para chegar a este dia de hoje e te dizer, e me dizer: finalmente. Eu consegui. Nós conseguimos. Já não faz mais sentido combater a tristeza com alegria, não é preciso mais regar as trevas com esta luz nem salpicar sorrisos nas feridas, porque já não existe nada para trás. Porque já não existe nada antes de você e de nós dois juntos assim.

E é assim. Finalmente, minha querida. Finalmente o amor. Porque o amor é essa chance, o amor é essa paciência, único jeito de resistir, o amor é o que faz a luz fazer a curva e voltar. O amor é esse barco que vem nos salvar. O amor, amor da minha vida. Finalmente o vejo do cais. Ele chegou. Finalmente.

Renato Cabral

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