domingo, junho 29, 2008

Prosas curtas sobre separações – 8

A separação corrói o interior. Destrói os pontos que conduzem a energia que liga o cérebro ao coração. Ou vice-e-versa. Tem horas que a separação induz ao sono. Ele parece ser a melhor opção, a condição, a única possibilidade. Se fosse possível. E nessas horas, nem o sono vem servir de bálsamo.
O que é dormir? O que seria o desligar-se da realidade e entrar no mundo onírico das noites calmas e suaves? Dormir pode vir a ser o que, realmente? É uma tomada de decisão? É agir de forma abrupta, utilizar-se de ferramentas mecânicas para alterar o próprio destino? É pecado mudar o próprio destino?

Aurora


Passava das três horas da manhã quando ela desistiu de tentar dormir. Jogou seu braço direito para o lado da cama e só encontrou um outro travesseiro sem dono. Macio, mas sem dono. Percebeu que ele estava frio, diferente do seu — quente por receber suas lembranças, sua cabeça quente, seus cabelos soltos, dispersos, sem caminho. Puxou-o para si, como se seu amante fosse. Inspirou o ar guardado nos flocos de espuma e a memória olfativa começou a trabalhar. Era como se pudesse penetrar por aquele travesseiro, olhar para cada um daqueles flocos como se fossem blocos macios de lembranças. Quase podia vê-los, identificá-los pelo aroma, reviver cada gota de suor por eles absorvida. Sua composição, seus hidrocarbonetos, podia reconhecê-los, lembrar de suas faces, se existissem. Suas formas, aproximando-se de aspectos cúbicos, de aparências de paralelepípedos macios. Hexaedros assim, não muito regulares. Aqueles flocos eram seus companheiros de noites, de manhãs, de tardes de amor, acompanhando suspiros, respirações um pouco mais ofegantes, ocasiões com falta de oxigênio. Mas mesmo assim, eles não podiam lhe dar respostas. Apesar de toda a empatia, nada mais que exalar aromas eles podiam fazer. Exalar aromas.

Eram quase quatro horas de um sábado, razoavelmente diferente de outras madrugadas de sábado do passado. Silêncio de almas dormindo, de luz da Lua a penetrar pelas frestas das venezianas de madeira, velhas e alquebradas pelo abrir e fechar às notícias do tempo, das nuvens, do Sol, dos vapores de mercúrio. Das serenatas inusitadas. O calor que já se pronunciava em Outubro lhe colavam de suor as coxas — dos joelhos ao púbis —, voltadas para o lugar vazio da cama. Seu braço estendido, agora sob o travesseiro, seu nariz a buscar emoções aromáticas, seus seios a roçar o lençol, seus pés espalmados, um com a planta por sobre o outro como Cristo na cruz e os olhos a mirar a luz lunar penetrando incólume no quarto... O desconforto de não dormir começou a lhe informar que assim permanecendo — em estado de insônia — lhe imporia penas rigorosas com seu rosto, com sua disposição quando o Sol surgisse na manhã de sábado. Isso já se denunciava em seu corpo, aquecido não pelo fino lençol de algodão a lhe cobrir a nudez, mas pela temperatura da estação, pelo simples fato de permanecer acordada — havia lido há algum tempo sobre o sono, sobre como o corpo humano reduz sua temperatura enquanto dorme —, por deixar seu sangue se agitar pelo movimento que ocorria em seu cérebro. Começou a pensar na razão que lhe fazia permanecer acordada enquanto muitos dormiam. A falta de sono apenas lhe tiraria a capacidade de melhor absorver as lições do dia que se avizinhava. Mas acordada estava. Mais uma vez, acordada estava e pensando — ou se deixando corroer por pensamentos. Fazia calor. Já não eram apenas suas coxas que se colavam molhadas pelo suor. Todas as partes de seu corpo que se tocavam entre si, aquecidas, se demonstravam desta forma. Pequenas gotas exaladas pelos poros, por entre pêlos, em curvas macias, se apresentavam ao ar. Molhavam.

Girou seu corpo, afastou o lençol, apoiou suas costas na cama, afastando ao máximo os braços e as pernas do resto do corpo. Seu corpo agora respirava, espalhado no colchão como o esboço gráfico do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci. Áureas Proporções se mostrariam naquele pequeno corpo nu de pele branca e macia, não fosse o escuro da madrugada, cortado apenas por fachos de reflexos esparsos. No teto, percebeu a sombra refletida dos arbustos do lado de fora. Algo no jardim refletia a luz da Lua — ou das lâmpadas da rua — por entre as paletas de madeira da janela e criava sombras, figuras estranhas na laje, como um cineminha de crianças. Assim como ao se olhar muito para as nuvens acaba-se encontrando imagens com significados, aquele embaralhado de sombras e luzes começaram a significar algo. Um coelho raivoso se transforma em uma palmeira de caule mais espesso que o comum. Um pirata com bandana na cabeça se movimenta até virar uma girafa alada. Aquela outra figura seria o perfil de um rosto masculino? Algo que lembrasse alguém? Mas tudo lembrava. Dos flocos de espuma no travesseiro às sombras no teto. Essa era a razão de sua insônia e ela bem sabia disso. Essa ausência acompanhada da ansiedade eterna, da sensação que ele acabará nos próximos momentos. Mas o tempo passa e não se acaba. E as noites vêm e o sono não. Mesmo com doses quase industriais de pílulas para dormir o sono que às vezes chega é um sono cansado — talvez mesmo por causa delas —, com pesadelos e sobressaltos.

Desiste das sombras cheias de figuras no teto, acende o abajur, cerra as pálpebras, protegendo as retinas da luz que reflete na parede pintada de um quase vermelho-abóbora. Se fumasse, fumaria. Em vez disso, procura um livro e o primeiro que lhe cai à mão é uma edição de 1979 de Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade. Sempre Drummond. Perdem-se os amigos, perdem-se os amores, mas os poetas sempre ficam. Principalmente Drummond. As folhas do livro, se um dia foram brancas, estão agora num tom quase acobreado. Repara neste detalhe, de como as folhas estão envelhecidas pelo tempo, ou pelas substâncias que trataram a celulose até virar papel. Se põe em dúvida se as folhas estão mesmo neste tom ou se apenas absorve a cor ambiente. Segura o livro com a mão direita e puxa com o polegar esquerdo da contra-capa até a capa, fazendo uma pequena brisa com as folhas. De repente, do interior, cai um pequeno papel. Agacha-se e já identifica a ocasião de sua origem. Numa perfumaria do centro da cidade, aquele papel servira para uma amostra de um perfume masculino. Ali no assoalho, agachada com o pequeno papel de amostra de perfume colado às suas narinas, com o perfume ainda presente no papel se misturando ao seu aroma de mulher, lhe fez recordar cenas de amor, de suor, de calor. Ainda mais lembranças a lhe tirar o sono. O sono.

Sente calor, sente necessidade de dormir. Procura entre livros, discos, pequenas caixas, canetas, batons, pequenos blocos de anotações, o frasco com as pílulas para dormir. Entre tantos objetos, chacoalha como uma cascavel. Deixa-o vazio com ajuda de uma garrafa de água, sem nenhum frescor. Abre as folhas da janela e um brisa fria invade o quarto, proeminente no sobrado. O céu ainda está escuro e o dia parece não chegar nunca. Antes de desligar o abajur, toma o livro, abre numa página qualquer e lê: Mas o homem perdeu o sono. Não podia acreditar. O sono. Novamente. Seria coincidência? E esta noite que não acabava... O dia que não chegava ou o sono que não vinha... Não sabia ao certo o que queria. Se queria dormir ou amanhecer. No escuro, já não sentia calor. Uma sensação de frio lhe arrepiava. Por fora e por dentro. As imagens no teto agora eram diferentes. O preto-e-branco havia ganhado cores. Estranhas. Assim oblongas. Psicodélicas. E o quarto parecia agora silencioso, como se antes não estivesse.

O frio continuava a entrar pela janela, empurrado pela mudança de cores que começava a acontecer na abóbada celeste. Ao pé da cama, o livro de Drummond aberto quase ao meio. Se ela pudesse, leria:

Por entre objetos confusos,
Mal redimidos da noite,
Duas cores se procuram,
Suavemente se enlaçam,
Formando um terceiro tom
A que chamamos aurora.



Livro: Antologia Poética - Carlos Drummond de Andrade
Desenho: Homem Vitruviano - Leonardo da Vinci








quinta-feira, junho 26, 2008

Antônio e João. Pedro e Paulo

O segundo nome do meu pai era Antônio. Ele dizia que era porque quando ele nasceu, os sinos da igreja de Santo Antônio badalaram. Ele dizia que era em homenagem. Ao Antônio. Assim, sempre me lembro dessa história quando é dia de Santo Antônio, mesmo sendo longe do aniversário dele. Outro dia foi dia de São João. E daqui a pouco, dia de São Pedro e São Paulo. Nunca me senti homenageado no dia 29 de Junho. Mas claro que já me senti em tantos outros dias. Nuns mais, noutros menos. Quem sabe, sabe.

Então agora, coloco aqui um poeminha para a época. Pra relembrar festas juninas gostosas. Pra relembrar aquelas na Dona Jorgina, tia do Júnior. Fogueira imensa (na verdade, a gente é que era pequeno), mesas fartas, bombinhas ensurdecedoras, santos no pau.


Brilho

Pepita
Faísca
Sputinik
Balão

Estrela
Espelho
Fósforo
Lampião

Lamparina
Pisca-pisca
Bola de gude
Luz de avião

Olho de gato
Vagalume
Espanta-brotinho
Traque de São João

segunda-feira, junho 23, 2008

Portuguesas - 3

Os silêncios


Não entendo os silêncios

que tu fazes

nem aquilo que espreitas

só comigo


Se escondes a imagem

e a palavra

e adivinhas aquilo

que não digo


Se te calas

eu oiço e eu invento

Se tu foges

eu sei não te persigo


Estendo-te as mãos

dou-te a minha alma

e continuo a querer

ficar contigo



Maria Teresa Horta

sábado, junho 21, 2008

Portuguesas - 2

Em posts futuros eu falo mais sobre Florbela Espanca. Talvez uma pequena biografia, algumas coisas sobre a vida tão doída dela. De como ela viveu de uma maneira tão profunda. Pra começar com ela, um poema que muitos de vocês conhecem na forma de música.


Fanatismo


Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida

Meus olhos andam cegos de te ver !

Não és sequer a razão do meu viver,

Pois que tu és já toda a minha vida !


Não vejo nada assim enlouquecida ...

Passo no mundo, meu Amor, a ler

No misterioso livro do teu ser

A mesma história tantas vezes lida !


"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."

Quando me dizem isto, toda a graça

Duma boca divina fala em mim !


E, olhos postos em ti, digo de rastros :

"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,

Que tu és como Deus : Princípio e Fim ! ..."


Florbela Espanca



domingo, junho 15, 2008

Portuguesas

Maria Teresa Horta é uma poeta da Terrinha portuguesa, assim como Florbela Espanca. Esta sempre sangüínea, intensa, se percebe o quanto mergulhava em suas paixões. Mergulhava tão profundamente que resolveu um dia não mais subir à tona. Maria Teresa é mais suave, mas não menos intensa.

Vou publicar alguns poemas das duas portuguesas para quem quiser utilizar deles como espelho. Se isso acontecer, terá valido a pena a publicação.


Morrer de amor


Morrer de amor

ao pé da tua boca


Desfalecer

à pele

do sorriso


Sufocar

de prazer

com o teu corpo


Trocar tudo por ti

se for preciso


Maria Teresa Horta

segunda-feira, junho 09, 2008

Um anjo chamado Sílvia

Eu ainda nem sabia ler e ia na casa do “Seu” Rosa ver gibi. Na época, Mickey Mouse, Pateta, Pato Donald e Tio Patinhas eram o centro das atenções da molecada. O tempo passou e aprendi a ler e continuei indo lá. Já entrava, falava “oi” para a Dona Nica, me sentava num sofá e fazia as minhas leituras. Quando terminava, deixava os gibis no lugar e ia embora. A Sílvia sempre estava lá com aquele sorriso imenso. Quem a conheceu vai se lembrar dele. Ela tinha a idade da minha irmã, mas conversávamos sem as fronteiras típicas de idade. O tempo passou, a Sílvia deve ter feito algum curso de cabeleireira e passou a cortar os meus cabelos numa determinada época. Não me lembro se eu a pagava, pois já tinha o meu dinheiro, ganho nas minhas ralações precoces. O tempo passou de novo. Eu não morava mais na Princesa Isabel e fui me afastando daqueles ares que povoavam as esquinas das ruas Goiás, Santos Dumont e Olegário Maciel. Acabei vendo a Sílvia apenas eventualmente. Mas nunca esqueci o seu sorriso. Um sorriso que só os anjos têm. Hoje a Sílvia foi embora. Não verei mais aquele sorriso. Talvez, como um anjo, ela venha a iluminar nosso caminho com a alegria de sua voz e a amplidão de seu sorriso. Nunca me esquecerei do sorriso da Sílvia.

domingo, junho 01, 2008

The Republic Tigers

Nesse blog tenho colocado alguma coisa de música. Vez ou outra adiciono um post com coisas diferentes. Também tem as coisas não muito diferentes, mas que são deliciosas. Mas quando me deparei com a música desses caras do Kansas vi (e ouvi) os dois adjetivos. Uma música talvez não muito diferente para alguns ouvidos e nem tão deliciosa para outros. Tem algo de folk, algo contemporâneo e ao mesmo tempo exala lembranças não vividas dos anos sessenta. Experimente aí.