terça-feira, abril 26, 2011

Minha nota de suicídio - por Renato Cabral

Pensar no fim é uma coisa que a gente sempre evita. É da gente. Do humano. De repente, pensar nele pode fazer com que tudo que possa acontecer antes dele tenha mais valor. Pensar nele pode trazer de volta as lembranças do início. E o fim pode ser o início. Porque o início é o começo do fim e o fim, apenas o final do início. Onde tudo começa e onde tudo acaba é o mistério. Por isso é fascinante.

O texto abaixo do Renato Cabral que retirei dO Ruminante mostra bem essa coisa de fim. Ou de começo. Um texto imperdível.



Minha nota de suicídio

Nenhum testemunho final dará conta do que foi uma vida. Assim como nenhum relato do fim poderá explicar uma existência que acaba. Quando vocês estiverem lendo isso, eu já não estarei…

Das coisas da minha infância eu me lembro dos cantos. Era onde eu me sentia seguro e confabulava contra o mundo, mastigando minhas dimensões ocultas e ruminando as pontes para o outro lado. Toda a quântica deve muito às crianças. Talvez sejam isso os universos paralelos que os físicos tanto apontam o dedo: a brincadeira solitária de um moleque entretido com sua distração.

Sempre me perguntei se era possível contar nossa história por meio daquilo que deixamos nos outros, dos poucos amores ou amigos. Daqueles com quem atravessamos desertos salgados, comemos juntos na mesma mesa durante anos, ou simplesmente compartilhamos nossa angústia numa esquina. E me esbarrando nesse amontoado de gente, conhecendo suas cores, seus sonhos que ficaram pelas margens, o cheiro do seu hálito em mim e o desespero dos seus sorrisos é que descobri: só podemos contar quem somos por aquilo que nos tornamos graças à presença dos outros.

E me lembro dos meus irmãos. Meu irmão sempre me viu como um herói. Nunca disse a ele, mas ele deve saber: como voei alto com sua capa. Os melhores amigos são aqueles que podem passar uma eternidade em silêncio. E assim fomos nós. Minha irmã é a paixão que não terei por uma mulher. Por ser mais nova, me ensinou o pouco que sei sobre cuidar, sobre o medo de perder. Ela também não sabe: mas me deu o melhor presente de todos. Não devo ter filhos. Ainda bem que ela teve.

Para não morrer como um estufado de nada, um inchado de vazio, traço esta promessa de lembrar. Talvez esteja aí nossa única chance. Porque a existência não é esta prosa construída no presente, mas a poesia com que refazemos o nosso passado. Se a vida vale ou não ser vivida eu não sei. Diante da lata de lixo e do estômago vazio, qualquer enlevo que vá além do beco é perda de tempo. Mas a gente sempre dá um jeito de dobrar a fome. Tudo pra poder se perguntar entre uma esquina e outra sobre quem somos e por que estamos aqui.

Quem eu sou começou com meu pai. Só depois de sua morte fui entender o que era realmente ser um homem. E nunca é tarde para fazer as pazes com a covardia e mandá-la de volta. Poucas vezes me senti uma pessoa grande. As únicas vezes quando isso aconteceu era ao lado dele que eu estava. Aprendi com ele a maior das lições: nunca esqueça que construir um lar é menos ter uma morada e mais ter a chance de poder fugir pra casa depois que você for visitar o mundo. Como ele era rico. Morreu sem nada para poder nos dar tudo.

Mas não é possível se tornar homem de verdade até que você conheça seu primeiro amor. O meu veio tarde, porque até minha ingenuidade demorou a chegar. Seu primeiro presente pra mim foi um cérebro de uma apis melífera. Depois fui saber que isso era uma abelha. Quando os anos que você viveu com alguém são maiores que a quantidade de brigas, você deve pegar tudo e guardar no mesmo vidrinho com os miolos da abelha, porque realmente vale para o resto dos dias. Foi minha primeira história. Foi a mais longa. Seria fácil dizer que ela sempre será a mulher da minha vida. Mas ela não é. Mas só por ela eu me tornei o homem da minha vida. Quando sua mãe morreu, eu chorei duas vezes. Uma porque perdi a amiga de tantos anos. Outra porque sua mãe era meu último laço com ela.

Aí veio aquela baixinha de cabelos lisos, tão pretos. Tão perfeita, tão irretocável que essa dádiva se tornou minha cruz. Nunca consegui entrar naquele palácio e aproveitar o banquete. Como um vira-lata, os lustres me assustavam e eu dava um jeito de procurar a companhia da Lua e do frio. De tanto amor misturado com descuido, adoeci. E o castelo feito de cristal se quebrou sobre mim. Após o fim, pensei pela primeira vez em me matar. Ainda bem que os apaixonados são tolos. Mas, acredite, meu blefe foi um dos mais sinceros “eu te amo” que já disse. Poucas vezes fui tão inteiro num instante só. E foi naquela noite em que a chamei para namorar. Talvez eu morra sem sentir isso de novo. Ela nunca soube disso. Já estava na hora.

Então, descobri que no escuro também é possível ser feliz. Lá, conheci um novo jardim. Ela era tão linda que nunca consegui soletrar seu nome; preferia chamá-la de Flor. Com ela tive a chance, enfim, de enlouquecer. Nunca fui tão livre. Nunca foi tão sofrido. Nunca fui tão desgraçado na sorte de ser eu. Ela foi mais que meu amor, que minha amante, que meu anjo da guarda. Foi minha parteira. E todas as noites uma de minhas preces vai pra ela. Tudo porque um dia ela pegou na minha mão e me fez aceitar o que talvez seja o desafio de uma vida: olhar para nós sem máscaras. Um homem deve dizer “que pena” apenas uma vez. E eu digo: Flor, que pena não ter dado certo. Mas se há um conforto, é que ela dizia que temos ainda várias vidas pela frente. Como eu gosto de acreditar nisso…

E veio o tempo de ficar sozinho. Mas como é solitário estar só. E numa noite das mais qualquer, eu conheci a mulher que qualquer um gostaria de conhecer. Pela primeira vez não fui arrebatado de cara. Mas porque a vida já tinha me tirado a inocência, eu já tinha olhos para vê-la. E pela primeira vez minhas odes, poemas e serenatas me continham. Eram pra ela e não mais pra mim. Pela primeira vez consegui começar a desaprender sobre aquilo que achava que era. Estava começando de novo de um jeito inédito. Nosso amor, como um soldado, teve que avançar de trincheira a trincheira; atravessar tudo o que a existência faz o favor de pôr no caminho pra nos dizer sobre aquilo que vale a pena. Fomos vencendo as bombas, os arames farpados e, um dia, sem acreditar, sem achar que era possível, nos amamos com tanta simplicidade e força que os poetas e os romances teriam vergonha. Pela primeira vez eu sentia algo maior que ciúmes. Sentia inveja toda vez que ela contava dos outros de sua vida. Era tão fácil ser feliz com ela que já não fazia sentido esperar por outras vidas. Pra quê a eternidade quando já se está nela? Nunca tive a desculpa de dizer que ela era a paixão certa na hora errada. Por isso, já não tento entender o porquê desse barulho absurdo que fazemos quando estamos juntos e que só nós podemos ouvir de tão bonito que é. Morro com esta.

Hoje é o dia de minha morte. E pensar nisso é de uma tristeza tão sem nome, porque viver é uma diversão que a dor só faz aumentar. O que me faz lembrar das duas mulheres que não precisariam estar nestas lembranças: minha mãe, Ana; e a filha de minha irmã, Ana. A gente escolhe apenas uma mulher na vida para morrer junto. Mas escolher duas mulheres pelas quais você morreria é um milagre.

E se não existe os imortais, existe a imortalidade. E a imortalidade é essa graça do outro que conversa dentro de nós, que sorri com a nossa boca e se conserva por nossos dentes. E o eterno é poder ainda, e apesar de tudo, se alegrar por meio desses exageros. Toda existência é o momento definitivo de si mesmo, que apenas se alonga, se irradia ou se adia. É um sopro, que será esquecido um dia, uma centelha que nunca produzirá a faísca igual de uma nova chance. E por isso há tanta beleza em cada acerto ou deslize. Porque em tudo isso há a morte como a melhor testemunha de quem somos, desse único tiro que temos. Se saber morrer é a única forma de aprender a viver, só vamos nos salvar no apocalipse de todos os dias. Por isso, hoje morro. Porque já é hora de começar a viver de verdade.

Que vocês saibam: encontrei a mão de cada um aqui dentro. E por isso não vou sozinho. Esta é minha carta de despedida. A hora de partir chega a cada instante. E, quando eu morrer, fiquem com esta breve nota, porque mesmo para uma morte involuntária, toda chance de despedida vale a pena. Quem sabe não nos vemos por aí de novo. Quem sabe…

Por Renato Cabral

segunda-feira, abril 18, 2011

Gozo VIII

Em cada canal
a sua veia

o veio que entumesce
no fundo da sua teia

Em cada vento
o seu peixe
no tempo que a água tenha

sedosa na sua sede
viciosa em sua esteira

Da seda
o tacto e o suco
dos lábios à sua beira

como se fosse um beiral
do corpo
p’ra lingua inteira

ou o lugar para guardar
o punhal
que se queira

Em cada punho
o seu ócio

um cinzel
de lisura

com a doçura do pranto
da prata e bronze
a secura

O travesseiro não apoia
as pernas já afastadas
mas ajusta as ancas dadas

Escalada
que se empreende na pele das tuas nádegas

Em cada corpo há o tempo
no gozo da sua adaga

Mas só no teu há o espasmo
com que o teu pénis
me alaga

Maria Teresa Horta

sexta-feira, abril 15, 2011

Gozo VII


São as tuas nádegas
na curva dos meus dedos

as tuas pernas
atentas e curvadas

O cravo – o crivo
sabor da madrugada
no manso odor do mar das tuas
espáduas

E se soergo com as mãos
as tuas coxas
e acerto o corpo no calor
das vagas

logo me vergas

e és tu então
que tens os dedos
agora
em minha nádegas.

Maria Teresa Horta

terça-feira, abril 12, 2011

Gozo V

Vigilante a crueldade
no meu ventre

A fenda atenta
e voraz
que devora o que é
dormente

a febre que a boca
empresta
a vela que empurra o vento

a vara que fende
a carne

a crueldade que entende
o grito sobre o orgasmo
que me prende e me desprende

Maria Teresa Horta

Bike&Art

Arte em duas rodas com música de primeira. Sugestão do Ugo Degani.

FROM STEEL: The Making of a Soulcraft from michael evans on Vimeo.


domingo, abril 10, 2011

Black

Gozo IV

Que tenhas de mim
o contorno incerto
acertado nas linhas do
teu corpo

os dentes nos lóbulos e no pescoço
os lábios
a lingua a cobrirem os ombros

Maria Teresa Horta

Why don’t we do it in the road?

WHY DON’T WE DO IT IN THE ROAD?
(John Lennon – Paul McCartney)

Why don’t we do it in the road?
No one will be watching us
Why don’t we do it in the road?

E POR QUE NÃO AQUI NA ESTRADA?
(tradução: Carlos Drummond de Andrade)

E por que não aqui na estrada?
Não há ninguém para ver nada
E por que não aqui na estrada?


sábado, abril 09, 2011

Sidney Lumet

Um filme daqueles especiais, com um ator especial como o Al Pacino e um diretor especial, que está acabando de ir embora. Sidney Lumet nunca ganhou um Oscar, mas isso não importa.


sexta-feira, abril 08, 2011

Even Flow

Seja paciente

Seja paciente com tudo que não há solucionado em seu coração
E procure amar as próprias perguntas.
Não procure as respostas que não lhe podem ser dadas
Porque não poderia vivê-las
E o que importa é viver tudo
Viva as perguntas agora
Talvez gradativamente e sem perceber
Chegue a viver algum dia distante as respostas.

Rainer Maria Rilke

terça-feira, abril 05, 2011

Tomie Ohtake - 6

Gozo II

Desvia o mar a rota
do calor
e cede a areia ao peso
desta rocha

Que ao corpo grosso
do sol
do meu corpo
abro-lhe baixo a fenda de uma porta

e logo o ventre se curva
e adormece

e logo as mãos se fecham
e encaminham

e logo a boca rasga
e entontece

nos meus flancos
a faca e a frescura
daquilo que se abre e desfalece
enquanto tece o espasmo o seu disfarce

e uso do gozo
a sua melhor parte.

Maria Tereza Horta

domingo, abril 03, 2011

Vanishing Point

Pra quem gosta de muscle cars e filmes daqueles, quem já não se fazem mais. E rock'n'roll.





Os astros íntimos

Consulto a luz dos meus astros,
cada qual de cada vez.
Primeiro olho o do meu peito:
um sol turvo é o meu defeito.
A minha amada adormece
desgostosa do que sou:
a estrela da minha fronte
de descuidos se apagou.

Ela sonha mal do rumo
que minha galáxia tomou.
Não sabe que uma esmeralda
se esconde na dor que dou.

A cara consigo ver,
sem tremor e sem temor,
da treva engolindo a flor.
Percorre a mata um espanto.

A constelação que outrora
ardente cruzava o campo
da vida, hoje mal demora
no fulgor de um pirilampo.

Mas vale ver que perdura
serena em seu resplendor,
mesmo de luz esgarçada,
a nebulosa do amor.

Thiago de Mello

Tomie Ohtake - 5



sábado, abril 02, 2011

Rosto

Rosto nu na luz directa.
Rosto suspenso, despido e permeável,
Osmose lenta.
Boca entreaberta como se bebesse,
Cabeça atenta.
Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na duvida do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.
Rosto derivando lentamente,
Pressentindo que os laranjais segredam,
Rosto abandonado e transparente
Que as negras noites de amor em si recebem.

Sophia de Mello Breyner Andresen

O queijo assassino

Recebi este texto por e-mail e não sei quem é o autor. Mas concordo com seu teor. Muita coisa tem ido para um rumo esquisito. Quando eu era criança e até minha adolescência, comia doce de leite que vinha embrulhado em palha. Ele tinha a parte de fora seca e crocante com o interior macio, úmido e deliciosamente doce. Hoje eles não existem mais. Quer dizer. Por fora, existem. Mas inventaram de colocar um saquinho plástico entre o doce e a palha que a faz perder o sentido. assim, o doce não tem mais a parte externa seca e crocante. Perdeu o sentido para o sem sentido policiamento do politicamente correto da saúde absoluta.

Esse texto aí fala disso. Dessa estupidez que esses politicamente corretos tem trazido para esses nossos tempos. Nos anos 50, nos EUA era o macartismo que policiava quem não era "correto". Agora é essa mentalidade ridícula que diz que um queijo é um assassino.


(Aconteceu em Uberaba)

Na Terça, 22 de Fevereiro de 2011, em Uberaba houve uma “operação de guerra” na qual policiais militares devidamente armados, PROCON estadual e vigilância sanitária derrotaram um bando de queijos. Os facínoras estavam expostos em bancas do comércio, principalmente no Mercado Municipal, ameaçando os clientes pois estavam despidos de uma embalagem à vácuo e pior, sequer portavam sua tabela de informações nutricionais.

A comunidade pode ficar tranquila, os heróis que defendem nossas vidas dos ataques desses queijos de péssima índole venceram, quase uma tonelada foi apreendida e destruída pois era “imprópria para o consumo”.

Que bom que em meio a tantos estupros, arrombamentos, roubos de cargas, tráfico de drogas, sequestros e latrocínios ainda exista gente para nos proteger dos laticínios.

Ora autoridades, tenham um mínimo de bom senso, a fabricação e consumo de queijos é um costume milenar no mundo e multi secular em Minas. O nome diz, queijo mineiro, feito de leite de vaca, usando coalho que por si só já é um agente biológico que o azeda. Essa tradição, mais que centenária, nunca matou ninguém, meu trisavô já vendia queijos “marginais” em Dores do Indaiá e nunca foi tratado como bandido, ou será que devemos nos arrepender por todas as fatias que já engolimos, às vezes com goiabada caseira (também despida).

O queijo mineiro, principalmente da Serra da Canastra é apreciado como uma iguaria, porém se for levado à geladeira altera seu sabor original, como querem esses “soldados” que doam suas vidas, se preciso for, para nos livrar desse “venenoso alimento”.

Parece que o PROCON não sabe, mas costumamos, “até mediante torturas físicas”, deixar os queijos expostos ao ambiente para que eles fiquem curados. O IMA (Instituto Mineiro de Agropecuária), casa de burocratas, impõe que ele seja embalado à vácuo e que traga na embalagem informações nutricionais. A continuar nesse pique o pão francês será o próximo, imagine um pãozinho embalado individualmente, com uma tabelinha de nutrientes e data de validade para sabermos se ele está quente do forno ou não. Tratam-nos como se fossemos ignorantes e sequer soubéssemos escolher uma fruta, um doce ou um pé de alface, deixem disso, temos mais o que fazer.

Estão extinguindo as chances de sobrevivência do pequeno produtor rural, aquele mesmo que por falta de opção vai ser um João Ninguém na cidade onde seus filhos poderão exercer atividades menos regulamentadas como o tráfico.

O excesso de normas inviabiliza os pequenos negócios em detrimento de grandes laticínios e hipermercados, portanto gera desemprego e tensão social. Fica, para as autoridades, um questionamento do povo:

Se prendem os queijos, porque não prendem os ratos?