quinta-feira, junho 16, 2011

Campos de concentração são mais bonitos de mãos dadas - por Renato Cabral

Não é que tem caminho mais difícil. Tem caminhos desconhecidos. Então, difíceis. Então, misteriosos. Então, lindos.



Naquele dia, quando li a frase mais triste de toda a Filosofia, tive que aceitar o que passamos a vida evitando olhar. Mas eu só tinha 14 anos e ainda não sabia que toda aquela dor e vazio eram ainda piores quando tudo crescesse e eu ficasse menor com a idade. Porque essa é a melhor imagem da vida adulta: sobre como nos apequenamos diante dos infortúnios. E foi naquele mesmo dia que fui arrastado para o campo de concentração. Mas, infelizmente, não havia inimigo presente para o qual levantar minha espada e resistir; e toda violência era um tapa que só doía por dentro. Um dia te falei que só há uma história que vale a pena ser contada: a nossa. Estava errado. Por isso hoje quero contar uma outra, que não é minha nem sua, apesar de a termos feita juntos. Ela fala como mesmo nos campos de concentração ainda podemos ser felizes. Nem todos conseguem, assim como não são todas as flores que dão a sorte de serem encontradas…

São nos momentos que precedem os desastres que podemos ver as coisas essenciais. E porque você estava do lado de fora, pude te ver. Sei disso, porque foi quando tudo virou silêncio e até os vendedores de chicletes da rua pararam de assobiar. Eu como mais um na fila, como o ruminante a espera do abate. E, que ironia, logo aquela fila, o pior lugar para quem tem urgência e pressa, foi o nosso começo.

Eu com um ingresso sobrando. Preso. Você do lado de lá da cerca, sem entradas. Mas livre. Eu, um refugiado, a caminho de menos um dia. Você, minha cruz vermelha, na luta por mais um, por salvar mais um. E quando nos olhamos pela primeira vez, foi quando pudemos trocar o que tínhamos sobrando. Eu, minha alma, meu pedido de ajuda. Você, sua liberdade. Porque começava ali, sem a gente suspeitar, a nossa história e o nosso amor. E que bom que o preço de amar não é deixar de ser livre, mas deixar de se importar com isso.

E te pergunto, por quê? Porque a mim, que não tinha escapatória, restavam as câmeras de gás. Mas a você que tinha tudo, podia ter fugido, mas me deu a mão e abriu mão de tanto para estar comigo ali…

Até aquele dia, até você chegar – e só fui saber disso agora – achava que a vida me teria como o grande desperdiçado, mais um filho que não deu certo, que quase vingou, mas tombou em vão. Como a eterna criança que por ter brincado demais levou a sério seu tabuleiro imaginário e a brincadeira perdeu a graça. Mas que bom saber que a única coisa em vão é mesmo a saudade com que lembramos da gente no passado, sempre achando que éramos melhores. Não somos.

Até aquele dia, hoje sei, me faltava saber olhar para as coisas simples e para as responsabilidades que podem, sim, trazer coisas grandes. Por não querer crescer, nunca pude aprender o que a vida adulta e madura poderia me dar. E recusei ser livre. Troquei minha liberdade pela má-fé nas filas. Eu cheio da companhia de outros vazios ao meu lado. É muito bom ser criança e brincar, mas é muito melhor ser grande e poder olhar mais longe e ir mais longe, além daquele pequeno parquinho de areia onde nos distraímos com nossa suposta ingenuidade.

Até aquele dia, achava que entrar nos campos de concentração não era uma questão de escolha. E não é mesmo. Mas a gente pode entrar de mãos dadas. A vida num campo de concentração já é por demais dura e difícil mesmo com nossa imaginação. Mas seria impossível sem um amor para nos salvar.

Você me salvou e nunca soube disso, porque nem eu sabia ao certo o que era aquela sensação que eu sentia ao estar de pé ao seu lado. Eu, pleno, eufórico, tímido com meu próprio bem-estar, envergonhado como se a felicidade fosse uma doença perigosa. Eu, um vira-latas que encontrou seu banquete, sua desforra, seu tempo de uivar de novo para a Lua que já habitava em mim. Eu, desconcertantemente cheio de luz, iluminado pelo seu sorriso. E triste por saber que todos nós podemos vibrar assim, mas poucos alcançam isso. E contente de saber que um alcançou. E sem palavras quando pude perceber que este homem era eu. Pelo menos uma vez na vida. Pelo menos por um instante fui eu. E naquela hora, sorri como em nenhum outro dia. E chorei como em nenhuma outra vez.

Que bom não termos nos perdido no meio da multidão. Quando me lembro dos sonhos do fim do mundo, agradeço por eles terem sido apenas o prenúncio ao contrário das coisas maravilhosas que iríamos viver. E se acabasse agora, saiba. Foram apenas alguns meses. Mas foram meus melhores meses. E porque a vida é por demais um campo de concentração onde empilhamos desastres e dessabores, onde nos empenhos em achar sentido para nossa existência, pude achar em você meu motivo para resistir. Enfim, já podia aceitar que cresci.

E agora, mais uma vez, me recordo daquela frase que foi o passaporte para ver o infortúnio que pode ser tudo isso ao nosso redor: “A vida é como um pêndulo, oscilando da direta para a esquerda, da falta ao tédio, sem nunca cessar”. Quem disse isso foi Schopenhauer. Ele não estava errado. Mas hoje, só hoje, como num milagre, contrariando toda a lógica, prefiro relembrar aquele filme que um dia vimos juntos e que termina assim: “essa parte da minha vida, essa pequena parte se chama felicidade.” Então, vamos aproveitar, minha querida, antes que o pêndulo volte a oscilar.

Ps. Me tornei homem aos 31 anos. Como demorou. E depois que esse dia chegou, pude ver o mais importante: saber olhar para trás e para tudo antes de hoje com a maior das gratidões. Porque tudo me levou àquele dia, àquela fila e se eu não tivesse entrado nela, não teria te encontrado. Que bom que você me tirou da fila. Que bom que você aceitou meu ingresso.

Renato Cabral

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