domingo, março 09, 2008

Alguns amigos

Encontrar com amigos é uma delícia! De certa forma, nos renovamos um pouquinho quando encontramos aqueles que nos viram ainda jovens. Buscamos memórias, contamos “causos”. A cerveja que embala esse encontros parece conter também um certo elixir da juventude. Como se recuperássemos algum tempo, se não alguns meses, pelo menos alguns momentos trazemos de volta.

Na casa do Merola, em homenagem à Cláudia, muitos daqueles de antigamente estavam lá. E sempre sai uma ou outra história. O Tribuna me autorizou a publicar uma determinada história aqui no blog, mas farei isso numa outra oportunidade. Mas publico uma outra dele, acontecida nos tempos em que tudo era muito simples. De uma simplicidade que nos faziam felizes.


A Pipoca, o Tribuna e o picolezeiro

Sempre se diz que quando se conta um conto se aumenta um ponto. Neste caso, acho que acrescento o milésimo primeiro, tantas vezes ele foi contado. Várias versões correm por aí e esta é apenas mais uma; e claro, não é a verdadeira, principalmente porque eu não estava lá. E mais, se estivesse, teria colocado meu ponto também. Mas vá lá. O que importa não é como aconteceu. A importância está em lembrar, escrever, lembrar, reviver, lembrar.

Ele transformou-se num respeitado advogado, eficiente em suas causas e referência para seus colegas. Mas para os amigos de antigamente era e continua sendo o Tribuna – certa vez no cursinho pré-vestibular, já sem paciência de tanto escutá-lo conversando na sala de aula, o professor disparou: “Pô! Você não pára de falar! Tá achando que está numa tribuna?”. Foi o suficiente.

Mas naquela época ele apenas pensava em se tornar um advogado. Ou não. Tinha acabado de fazer o NPOR e as doutrinas do Exército Brasileiro ainda pairavam sobre sua cabeça. Naquela tarde, ia para um compromisso, um estágio ou algo que necessitasse o uso de mangas compridas num calor de cerrado. Mas o Kenner e o Júnior não tinham um compromisso tão sério. O único objetivo naquele dia era fazer aquele automóvel que eles tinham em sociedade funcionar. Era um exemplar hoje raro de uma camionete Ford V8, nas cores branca e verde claro, do início dos anos 60, daquelas que se trabalha dentro do capô. Lataria dura como a vida. Comprada com suas economias, (toca fitas Mecca, conhecido como comedor de fita) sempre recebia todas as atenções da dupla. Eles nunca haviam fumado. Não haviam se encontrado com Bob Dylan, gostavam mesmo era de mecânica e cerveja. A camionete até nome tinha: Pipoca era como uma namorada dividida por dois primos. As câmaras de ar saiam dos pneus, como que pedissem liberdade. Óleo pingava por onde ela parasse. Desnecessário dizer que foi comprada por preço baixo porque quase nada nela funcionava. Mas quando funcionava, o seu ruído era um espetáculo à parte. Todos na rua olhavam para seus ocupantes: Kenner e Júnior, mais algum exultante convidado. Naquele dia, a Pipoca até que estava funcionando, com apenas um detalhe: quando em movimento, não podia ser parada porque seu motor apagaria e nova jornada capô a dentro deveria ser implementada. Foi quando Tribuna chegou ali na Princesa Isabel e perguntou se não podia ganhar uma carona. Estava indo para seu estágio num escritório de advocacia e chegar lá sem nenhuma mancha de suor na camisa de mangas compridas não seria nada mal. Kenner estava mergulhado dentro do motor da "poderosa" tentando destravar as marchas. Os dois "mecânicos" disseram que tudo bem. Podia. Mas não ia dar para parar porque senão a máquina apagaria e o trabalho deveria ser feito novamente.

— O que que é isso? Vocês estão pensando o que? bradou um exaltado Tribuna.

— O cara ficou bravo com a gente... pensou um dos dois.

— Vocês esqueceram que eu sou Tenente da reserva? No Exército fiz várias operações que a gente saltava de um caminhão em movimento. É simples. Na hora de descer, eu abro a porta e salto. Vai ser mole!

Os dois olharam um para a cara do outro, nenhum tinha feito serviço militar, não sabiam o que era saltar de um caminhão verde oliva em movimento, com arma e mochila, mas se ele estava dizendo que era mole, era mole. Vamos lá. Feita a trabalheira de ligar e manter em funcionamento a geringonça estavam lá o Kenner na direção, o Júnior no meio e o Tribuna na janela. Para fora dela o cotovelo embrulhado numa camisa de mangas compridas, calças pretas compondo um figurino de um cara sério, Tenente da reserva e futuro advogado, num corpo esguio e alto, ainda com os músculos formados pela mãe Pátria. A Pipoca deu uma rateada, cuspiu um pouco de fumaça, mas aquele maravilhoso ruído mais uma vez chamou a atenção de quem estava por ali. Os três saíram orgulhosos, subindo a Princesa Isabel rumo à praça Raul Soares. Alguns malabarismos do então futuro piloto de rally e secretário municipal para não atropelar Dona Páscoa, nem bater na primeira esquina foram necessários, mas a máquina ia muito bem. A conversa corria solta, falavam da maravilha que era aquela máquina, de como implementariam melhorias naquela conquista. O mundo era bem mais bonito e pequeno do alto daquela cabine. Enquanto isso o Sol castigava o asfalto da Cipriano Del Fávero.

Logo após passar pela praça Sérgio Pacheco — sob o viaduto que ligava o centro da cidade à avenida Fernando Vilela — Tribuna fala que vai descer. Pedir para diminuir a marcha nem pensar. O cara já tinha saltado de um caminhão com um fuzil FAL carregado! Apertou a mão do Kenner, a do Júnior, agradeceu a carona e ouviu um tímido pedido de cuidado. Combinaram que à noite poderiam ir tomar uma cerveja no Willian. O Kenner prometeu ao Júnior que, se fossem, não usaria nenhum sapato dele (do Júnior!) nem o perfume novo que ele havia ganhado. O Tribuna abriu a pesada porta, pisou naquele largo estribo que só as antigas camionetes tinham, fechou a porta. Mais uma saudação e pulou. Como Kenner não sabia pular de um veículo em movimento, perguntou ao Júnior: “E aí?” Momentos de suspense... “O Tribuna caiu!” disse Júnior. Kenner pensou, o que era pior: se o encavalamento das marchas ou o tombo do dito cujo. Rapidamente olhou pelo retrovisor interno para certificar-se do acontecido. O que viu foi algo rolando pelo asfalto, como se fosse um pacote com camisa de mangas compridas e calças pretas. Claro que tiveram de parar e o motor da Pipoca mais uma vez apagou. Júnior olhou para trás e o Tribuna já havia se levantado e um picolezeiro — que passava pelo local tentando implementar seu negócio — tentava ajudar e pelo gestual do Tribuna parecia que ele falava:

— Não se preocupe! Está tudo bem! Sem problemas! limpando os ombros, as coxas e o orgulho próprio ferido.

Quando os dois chegaram perto viram que uma camisa de mangas compridas a menos existia no mundo e um “causo” a mais surgia para o Kenner e o Júnior, mestres na arte de contar “causos”, espalharem para todos os amigos.

Até hoje, quando um dos dois contam este fato junto a algumas garrafas de cerveja, todos, inclusive o ator principal, choram de rir. Talvez pelo fato de nunca terminarem o caso — impossibilitados pelo riso —, nunca se soube se a Pipoca logo funcionou, se o Tribuna voltou para casa, se compraram um picolé ou se foram à noite tomar algumas cervejas.

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