quarta-feira, dezembro 19, 2007

Prosas curtas sobre separações - 2

Há alguns posts atrás incluí um texto que escrevi em 2000. Pra ser mais exato, no dia 21 de Maio. É sobre cinema, é sobre pessoas, é sobre essa coisa a que chamamos viver. É sobre amor, é sobre separação.

Depois que escrevi este texto, resolvi fazer mais. Imaginei fazer uma série. Prosas Curtas sobre Separações. Mas por que o tema? Porque é popular, porque acontece, porque é assim que a vida é. Ao longo dos anos, fui tentando um texto aqui, outro ali. Nada que despertasse aplausos, nada que não fosse assim tão diferente. Mas quis fazer as prosas seguindo uma determinada linha. Quem se atentar, perceberá. Mas algo é claro: tem sempre uma ou mais obras de arte presentes: música, filme, livro, etc. Há sempre um local ou um ambiente que define o clima. Os personagens não têm nomes. Não há referências do que aconteceu e do que acontecerá. Cada um que ler que resolva essa questão.

Então, resolvi publicá-los aqui. Mais uma vez me dizem que estou ausente deste blog. Preciso mesmo estar mais por aqui. Sei que muitos aqui aparecem pra me encontrar. Preciso vir mais. Assim, vou publicar este que já é o segundo (o primeiro, O Último Cinema do Centro pode ser lido por este link). Prometo publicar os demais a cada mês. E, de repente, até escrever mais alguns dentro do mesmo tema.

Aguardo os comentários dos que aqui vem me encontrar.


It Never Entered My Mind

Eram quase onze horas da noite quando a porta bateu às suas costas. A cada lance descido da escada um quase tombo, que seria provocado pela irregularidade entre um degrau e outro, formando um leque de sombras e luzes amareladas. Quando chegou ao térreo, a respiração que já estava difícil pelas narinas entupidas, pareceu piorar pelo esforço de saltar pelos degraus, fazer as curvas nos patamares, se assustar pelos quase tombos. Novamente aquele térreo de luzes apagadas e a procura pelo interruptor do porteiro eletrônico que abria a porta. A tentativa que começou com uma carícia na parede logo se revelou em tapas nervosos que, claro, resultaram na abertura da porta. Esta foi preciso puxar para ser fechada.

Já não chovia mais. O chão da calçada e da rua estava molhado como se alguém o houvesse lavado e puxado a água com um rodo. Não havia enxurrada e as nuvens brancas e baixas se movimentavam em alta velocidade, mostrando que logo o céu se abriria para as estrelas. Mesmo assim, empurrada pelos largos e apressados passos, a água do piso subia pela sola e molhava a parte de cima dos sapatos da cor da roupa daqueles estrangeiros que vão à África em filmes antigos. A água tornava o bico dos sapatos em marrons quase pretos, mas nenhum pingo manchara o resto da roupa. 

Antes de entrar num bar, estilo café – destes de onde as pessoas pouco vêem a rua e de fora não se sabe como está lá dentro –, olhou para os sapatos e, por um átimo de tempo, aquela mancha marron se tornou o principal problema de sua vida. Se arrependeu por os calçar naquela noite, como se soubesse que choveria. Dentro do bar, ninguém se importara pelas manchas marron-escuras num par de sapatos cansados e destituídos de alguma postura nobre e elegante; até porque logo ficariam escondidos por debaixo do estribo do balcão.

O cara que servia bebidas não era o de sempre. Pensou em perguntar onde ele estava, pois um rosto conhecido até que seria bom naquela hora. Mas desistiu. Devia ser o dia de folga, devia estar gripado em casa, devia ter achado coisa melhor que ficar escutando conversa de bêbado. Só pediu uma vodka com limão e girou o pescoço à sua volta para perceber se o haviam percebido. Mas cada pessoa do bar, cada grupo de pessoas só estava interessada no seu micro ambiente. O barulho de copos, de conversas, o barulho de um bar deste tipo as fazia se juntar para compartilhar o assunto. [Não conseguia entender o que tinha acontecido naquela noite. Aquilo não entrava na sua cabeça.] Um surpreendente trompete de Miles Davis – parecia até milagre escutá-lo ali, como na trilha sonora de um filme europeu – desviou sua procura visual pelo ambiente para a atenção auditiva. Tinha quase certeza que aquela música havia sido tema de algum filme. Quis tentar lembrar do nome, o ator, quando havia assistido, mas a atenção se desviou para as pessoas. Então, começou a perceber as palavras de sedução de um casal ao seu lado. Ela de pé, brincando com o salto alto no estribo do balcão e ele sentado no banco, para nivelar os rostos e as palavras. Aquela velha conversa de melhor mulher do mundo, de amor eterno, razão de uma vida... O piano compunha com a bateria tocada com aquelas vassourinhas, dando suavidade à melodia do trompete. E sua memória, já embalada pela vodka, viajou por lembranças, por sons parecidos com aqueles, por palavras parecidas com aquelas, por gestos parecidos com aqueles.

Quando olhou para os lados, não havia mais Miles Davis, nem casal encostado no balcão. Apenas dois homens e uma mulher numa mesa do fundo jogavam fardos de fumaça ao ar pesado que os rodeava. O cara que serviu sua vodka pedia com os olhos que todos fossem embora, que o deixasse ir dormir, largar seu corpo cansado num magro colchão num bagunçado quarto qualquer. Ao pagar a conta é que percebeu que não havia tomado apenas uma vodka. Desconfiou do cara, achou que ele estava querendo cobrar mais que o devido, mas pagou e saiu. E teve a certeza que o cara estava certo. O embaralhar dos passos mostrou que não foi uma nem duas vodkas. O cara nem teria interesse em lhe roubar algumas vodkas.

Suas narinas já não estavam entupidas, pois sentia o vento frio da madrugada a entrar por elas, se misturando ao torpor do álcool destilado. Não podia decidir nada, mas o alto teor de coragem a que foi tomado o empurrava rua afora. Quando deu por si, estava em frente ao prédio que horas antes havia deixado. Um cachorro vira-latas acorda assustado, late esganiçadamente, tenta mostrar posse do lugar próximo à entrada do prédio, mas foge buscando outro lugar para terminar a noite. Os latidos do cão são os únicos sons que podem ser ouvidos na rua afastada e quieta daquele bairro. Apenas eventualmente um carro passa pela rua transversal, com mais movimento já que era uma das ligações com o centro da cidade. Não mais que os sons abafados e afastados que uma cidade emite podia ser ouvido. Era tanto silêncio que, se tentasse, poderia ouvir o ressonar das pessoas dormindo naquele prédio. Afinal eram apenas três andares de um prédio construído bem no alinhamento da rua, com as janelas dos apartamentos voltadas para ela.

Para ter mais visão da fachada do prédio, atravessou a rua, sentou-se na mureta de uma casa, levantou os olhos, buscou a janela mais à esquerda do último apartamento do último andar. As luzes estavam apagadas. Todas as luzes de todos os apartamentos estavam apagadas. Tentava imaginar como estaria o interior do quarto. Se haveria roupas espalhadas pelo chão, se a porta estaria aberta, se haveria perfumes e cheiros. Se havia sons. Se lembrou de Miles Davis e o casal cheio de conversas e intenções. Se lembrou do cara que servia bebidas no bar e sua vontade de ir para casa. Talvez nem teria chegado ao seu magro colchão àquela hora. Se lembrou dos bicos de seus sapatos, encharcados e manchados. Olhou para eles e estavam secos. Seus olhos também não estavam mais molhados. Suas narinas também não estavam mais entupidas. Não entedia a razão, mas se sentia bem. Se fosse num script de um filme metido a sério, talvez tentasse alguma coisa. Um grito, um tiro, um ato qualquer. Mas a única coisa a fazer era se recostar no gramado da casa, também já seco, que se erguia num talude da mureta até uma varanda no alto, cercada por grades, como uma grande gaiola sem pássaros. Ficou a olhar para a fachada do prédio.

As manhãs dos longos dias de Dezembro começam bem cedo e o Sol aquece toda a cidade que se movimenta, agita e faz barulho. Não só a rua transversal agora está movimentada. A cidade toda se envolve numa busca frenética por algo. Molhada pela chuva do dia anterior e aquecida pelo Sol, a grama do talude cresce.

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