sábado, setembro 03, 2011

Meus adoráveis desassossegos, por Renato Cabral




Comecei antes dos 21. Comecei na poesia, pois falar nunca foi um dom para mim. Foi coisa que aprendi a sangue e suor. Comecei a escrever pra tentar comunicar o que eu sentia. Fui indo. Me empolguei e quis estudar a coisa. Li os caras. E deu-me o desânimo. Nunca chegaria aos pés de qualquer um deles.

Mas a gente é viciado. Ainda escrevo quando deveria falar. Não falo no momento certo. Me arrependo. E aí, escrevo. E quem sabe, me entendam. Quem escreve sabe.

E aí, leio o texto do Cabral mais uma vez. E deu-me o desânimo. Sei que vou continuar a escrever. A gente é viciado. Mas o texto do cara diz. O Cabral diz. Diz o que nós, que escrevemos, queremos dizer. Eu queria ter dito, mas não fui eu quem disse.

Juntei esse vídeo com a música do Ryuichi Sakamoto, que tem fotografias que eu queria ter feito. Música que eu quis ter feito. Pra servir de fundo prum texto que eu quis ter feito.




Aos 21 comecei a escrever. Tardio e adiado como todo homem sem talento. Estava sempre apressado a arranhar a folha. Era para me ver livre de mim. Fazia de cada risco, um autoflagelo; de cada ponto, meu auto vodu. Na verdade, era o contrário. Os rasgos já habitavam a pele e escrever era costurar a folha.  Eu, costureiro de letras, artesão de frases. Meu formão, o dedo; minha agulha, a ponta da língua.

Não revisava o que era expelido porque não dá para voltar atrás num espirro. Minhas letras eram isso: excreções e desatinos. Meu método: abaixar as calças da cuca e fazer força. Quando dava tempo, quando não escorria perna abaixo.

Achava que ruminava, mas era mais mastigado que mascava. Punha o fermento das vísceras para fora achando que me limpava e, dentro da cabeça, mais o mau cheiro brotava entre as orelha. Eu a cada dia mais nojento, porque toda perversão é uma impotência, um jeito de dar conta do avesso. E a pastinha de arquivos ia inchando.

Ainda assim, tinha algo de essencial em escrever. Mesmo sem a inteligência farta, mesmo sem o esforço que transpirava, escrevia como se disso dependesse a vida, mesmo que não dependesse disso para viver. Porque nunca fui bom o bastante. E todo tapa nas costas era um tapa na cara e uma vergonha.

Tentei parar. Tentei ler. Fui aos clássicos e aos subúrbios. Abria as páginas pelo meio. Ignorava índices, preâmbulos. Mas dos livros, só encontrava desassossegos, tudo aquilo que sempre me fez companhia. Não os desesperos que precedem tragédias ou as dores. Mas o pior deles: o desespero de se ver pairando frente as brechas sem poder atravessá-las. O desespero de ter a consciência e não poder lançar o dardo, ferir qualquer inimigo. O desespero que desperta e não derruba da cama. O desespero de sucumbir asfixiado pela tosse alheia. O desespero que fixa o membro adormecido ao sofá e amputa qualquer movimento. O desespero de ver a dose de urgência pingando homeopaticamente, sem nunca chegar à paralisia terminal. O desespero do quando muito, muito pouco.

Daí, um dia, mexendo na absurda simplicidade dos títulos de meus textos, de tantas coisas sem viço, de tantas bobagens que se mascaravam de viscerais, disse chega. Queria a cura. Queria não depender das muletas dos parágrafos, do soro da semântica, nem das pontes atadas entre hiatos. Mas o grito do ruminante não ecoou. Porque, por ter passado a vida como um acanhado, meu gemido trincava mais os dentes que as janelas. Era sempre um grito para dentro, dentro da jaula.

Na carne crua da mente, o cheiro de algo podre, e os carniceiros a retirar as últimas sobras da sanidade. No escuro, os bons-dias fumegantes das baias a me tomar qualquer chance de fuga, como almas penadas a me avisar que eu também era portador da mediocridade dos dias. Em cada arroto evitado, uma condenação. Na esperança teimosa, tão cristã, que me deram junto ao mingau quando criança e pela vida toda, uma corrente de mil elos. E a vida mínima, aquela tolerável, a das liquidações, a da pechincha, a um passo além, sempre a escapar.

E de lamento em lamento, de rancor em rancor, eu me derretia em cada folha. Elas cheias. Eu faltando fora.  Meu abrigo com um guarda-chuva a apontar para o raio. Correram-se as páginas, os anos e os malditos reflexos das folhas quase brancas. A cabeça já curvada não pela força das opressões, mas pelo amontoado de ideias a serem enterradas, pelas ousadias apagadas, pela hipocrisia assumida em tantos “um dia irei fazer, irei fugir, irei dizer não, irei dizer sim”.

Cada chicotada a me arrancar o afeto sem me retirar a direção do pasto. Meu semblante desfeito por pancadas, mas os pulsos firmes, a segurar a pedra na mesma posição; o castigo de empurrar a roda sem fim, sem tropeço. Às vezes até via minha gaiola aberta. Mas o animal peçonhento que deveria ter me tornado se domesticou com a comida fácil. Fiquei gordo e satisfeito de preguiça de partir e urrar. Nos olhos resignados a cada gole, uma mentira e um bocejo. Minha rapina como um adorno sem graça até para os caçadores.

Percorri as escrituras de quem realmente era bom. Busquei inspiração em tudo para tornar minha mente ereta, para ver se, assim, minha espinha também se erguia e, assim, eu tirava a cara da lama, desse abismo a fitar o céu. Mas como pesa ter visto coisas demais tão cedo, ter tido na pele tantos rabiscos. Mas todos temos, eu sei. E por isso todos andam tão tortos.

Queria a pá para tampar esse buraco que não se enche e não tem fundo; de onde não se pode cair nem saltar. E a cada monte de terra, enchia a cara de pó. Eu a me enterrar vivo. Ali, na margem onde é costurado e desfeito o abismo, só o desespero de estar do mesmo jeito: na iminência da queda desastrosa e do passo salvador; à espera do empurrão ou do susto que nunca chegam. Eu, nem ponte nem travessia. Eu, como um ruminante cego em frente a uma porteira que não existe… sem pastar, sem atravessar.

Procurei então em cada página do meu passado o grito de raiva que poderia, enfim, realizar minha missão humana: enlouquecer, virar um bicho, fugir, voar, quebrar os muros, me suicidar ou qualquer coisa que trouxesse dias mais livres ou mais leves. Mas tudo já faltava. Até a vontade de morrer. Menos a vontade de escrever morria.

Mas nem eu entendia o que escrevia. Eu achando que era epifania quando na verdade era disenteria de uma alma colérica. E o que sobrou, o que ficou, não foram os feitos ou a memória malcheirosa das coisas deixadas pela metade. Restou a certeza de que mesmo diante de todos os esforços para quebrar os muros e abrir os livros, ainda sim o que podemos ver do outro lado são apenas míseros platôs, a permanência inexorável da falta de sentido grudada ao cheiro desta náusea de todos os dias. Porque a única coisa que pode salvar uma alma neste mundo não é a fé, a diversão ou o esquecimento, mas a sorte ou um amor. Mas os amores se vão e a sorte nunca vem. Porque viver é um azar, mas ter sorte é um milagre. Que o tempo que me roeu a folha não me coma os versos. E que minha lágrima que não dorme mate minha sede que não chora, tudo enquanto me pergunto de onde vem todas essas linhas que saem de meus olhos. Que minha tinta não seque antes do ponto final.


Renato Cabral

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