sábado, maio 31, 2008

Prosas curtas sobre separações – 7

As pessoas agem de maneira totalmente amorfa ante uma separação. Me repeti agora. Mas é mais um fato que agora se repete nessa prosa. O agir de forma completamente estranha ao comportamento dito esperado das pessoas.

Há um filme interessante em que o personagem principal sobrevive a um acidente aéreo e acaba se transformando. Vai ao encontro do que lhe ameaçava. Não tem mais medo. Se joga contra a parede que lhe escondia a verdade. No filme se apresenta um rompimento. Na prosa aqui, por um lado ele se apresenta também, mas por outro é apenas um esboço. Ou uma tentativa. Ou nem uma coisa nem outra. Tudo se torna confuso na mente das pessoas ante uma separação. E amorfas se tornam suas ações.

Lâmpadas Brancas, Lâmpadas Róseas

Só se lembrava da caminhonete subindo — subindo era realmente a palavra correta para descrever o que o veículo vindo pela esquerda fez — sobre o pequeno e frágil carro que ele dirigia. Mais que isso em suas retinas, só a luz vinda daquela típica luminária de hospital, com seis lâmpadas cegantes, direcionadas para o foco que lhes interessavam, era o que a lembrança reportava. Não era só isso. Se lembrava também da lataria se dobrando, do barulho dos vidros se quebrando, dos ossos se quebrando. Era como se tudo se passasse em slow motion. Acabara de se lembrar de um filme, com Jeff Bridges, onde um avião caía e o desastre, o horror, se esmiuçava na grande tela. O aço da carcaça do avião comendo a terra, revolvendo a plantação — de milho? — com pessoas, com bagagens, com poltronas se misturando como num liqüidificador. Percebeu que sua experiência tinha sido bem mais tranqüila. Não havia pessoas, bagagens, poltronas, pés de milho. Apenas aquela caminhonete lhe tomando o espaço. Apenas seu braço esquerdo, sua clavícula sendo esmagados por aquele ser metálico, movido a diesel, fumegante. 

Continuavam ali as seis lâmpadas, a observar o que sempre observavam. Corpos despedaçados, seres nascendo, outros morrendo. Cânceres, infartos, buracos por tiros, ossos estilhaçados. Sangue brotando. Vidas se esvaindo. Brancas, sépticas, eficientes. Assim continuavam as lâmpadas em sentinela. Continuavam as lembranças, continuava o cérebro a restituir os flashs da memória, a própria memória. 

Do lado de fora daquele ambiente limpo, cartesiano e eficaz, outra pessoa conversava sobre o ocorrido. Dizia não entender como podia aquilo ter acontecido. Ele era — ou ainda é — o exemplo de perfeição em conduzir uma máquina no trânsito. Nunca atravessara um sinal vermelho. Nunca entrara numa contramão. Nunca dirigira do lado esquerdo de uma via. Como poderia ter se envolvido num acidente de trânsito? Se distraiu ou fez algo de errado que não podia ser identificado. O cara da caminhonete em nenhum momento foi citado como possível responsável. Ela já começava a criar a possibilidade de ele ter criado o fato. Ter criado o acidente para chamar sua atenção. O fato de há alguns dias haver terminado com a relação entre eles lhe parecia ser a razão mais apropriada para explicar aquele insólito acontecimento. Um acidente de trânsito ocorrido com uma pessoa que absolutamente não era a pessoa que se poderia envolver num acidente de trânsito. Pessoa cuja capacidade de tratar com as habilidades necessárias para se safar naquela selva do dia a dia da cidade era ele. Mas onde ele estava naquela hora?

Ela explicava para seu interlocutor que aquilo parecia coisa arrumada, não era possível que o acidente pudesse ter acontecido com uma pessoa tão cuidadosa. Um simples acidente de trânsito parecia ter sua ocorrência relacionada a interromper aquilo que ela havia iniciado há algum tempo. Há algum tempo ela havia determinado que sua vida seria alterada. Há alguns meses havia decidido que a retidão, o caráter reto e sempre previsível dele lhe interrompia seu caminho para o que entendia ser seu objetivo de vida. Aquela vida estava absolutamente retilínea, reta demais. Entendia que não havia nascido para retas e ângulos retos. Gostava das curvas, das forças centrífugas, das forças de atrito se relacionando com seu corpo. Com ele, tudo era muito normal. Só normal. Normal no sentido da norma. Previsível. Como um homem tão previsível podia se envolver num prosaico acidente de trânsito? Ela olhou para seu interlocutor, pegou sua mão, sentiu seu calor, percebeu que era o mesmo de sempre, mesmo naquela situação, dentro de uma sala de espera de um hospital. Mãos curvas, pensamentos oblíquos, caráter em forma de camaleão, se adaptando às situações. Curvas, forças centrífugas, forças de atrito. Forças de atrito a criar calor, o mesmo calor antes percebido naquelas oportunidades sentidas. Acontecidas e gozadas em seu esplendor e objetivadas em suas repetições. Uma sensação de segurança lhe passou pelo corpo roliço e quente. Mesmo uma sensação sabida por ela que não lhe trazia segurança. Sensação efêmera é verdade, mas que lhe parecia eterna. A efemeridade e a eternidade se confundiam na sensação e na mistura das letras. Não mais lembrava porque estava naquele hospital. Apenas o que lhe aportava à alma era aquela sensação.

Saíram da sala de espera, cruzaram o saguão onde pessoas tensas, com almas em suspensão aguardavam algo. O ar da rua, mais leve, em movimento por uma suave brisa, criava uma oportunidade mais amena, mais aconchegante para as possibilidades. Entraram no carro estacionado próximo à entrada do hospital. O motor potente, a reluzência da tinta metálica e dos faróis de xenônio e dos vidros blindados eram mais fortes que as seis lâmpadas daquela luminária do centro cirúrgico. O motor rugiu forte, o movimento se fez, o ar se deslocou e as lanternas traseiras e vermelhas foram diminuindo de tamanho conforme se afastavam. As lâmpadas de vapor de sódio avermelhavam a cor prata do carro, apenas quando por baixo delas ele passava, tornando-o salmão. Era como uma lâmpada rósea a piscar intermitentemente. Da cor de mertiolate, timerosal, como na sala do centro cirúrgico.

As seis lâmpadas continuavam brancas, sépticas, eficientes, objetivas no direcionamento ao seu escopo de existência. Retas, como para o qual foram desenvolvidas e fabricadas. A iluminar o reto, mesmo agora fragmentado.


Filme: Fearless (Sem medo de viver)
Diretor: Peter Weir
Com: Jeff Bridges, Rosie Perez, Isabella Rossellini, Tom Hulce.



domingo, maio 25, 2008

Por acaso

Um dia fui menino e li “O Pequeno Príncipe”. Confesso que mais de uma vez. Vi o filme também, em que o ator que fazia a serpente dava um show de expressão corporal. É um livro que ficou marcado por ser o preferido de candidatas a miss. Talvez não por isso, mas algumas pessoas sempre torceram o nariz quando se falava de Antoine de Saint-Exupéry. Não li muita coisa dele, realmente. Mas esse texto aí me caiu por acaso e quando terminei de ler, resolvi postar aqui. Dizem que nada é por acaso.


Cada um que passa em nossa vida,
Passa sozinho…
Porque cada pessoa é única pra nós,
E nenhuma substitui a outra…
Cada um que passa em nossa vida,
Passa sozinho,
Mas não vai só…
Cada um que passa em nossa vida,
Leva um pouco de nós mesmos,
E nos deixa um pouco de si mesmo…
Há os que levam muito,
Mas não há os que não levam nada…
Há os que deixam muito,
Mas não há os que não deixam nada…
Esta é a mais bela realidade da vida.
A prova tremenda da importância de cada um,
É que ninguém se aproxima do outro por acaso...

Antoine de Saint-Exupéry




sábado, maio 24, 2008

quarta-feira, maio 21, 2008

Um ou outro Pablo

Ele nasceu com o nome de Neftalí Ricardo Reyes Basoalto. Era chileno, comunista e adorava as mulheres. Então, era um poeta. Alinhavou as palavras de uma maneira que fazem delas abridoras de coração, iluminadoras de alma. São tantos e tantos poemas que seria covardia escolher apenas um para colocar aqui. Mas resolvi escolher um. Vou postar este aí de baixo, com essas letras e fontes de computador. Mas tenho certeza que um dia escreverei este poema numa folha de papel com a minha letra angulosa, com “S”s com rabichos e “L”s esticados. Usarei uma caneta que esbanje tinta. Talvez um azul royal ou um verde azulado, pra lembrar o mar do Atlântico. Talvez cole uma ou duas fotos em preto e branco. Colocarei uma linda moldura e o fixarei numa boa parede, num lugar em que eu possa passar várias vezes ao dia. Pablo Neruda me ajuda a dizer minhas palavras.


É assim que te quero, amor,

assim, amor, é que eu gosto de ti,

tal como te vestes

e como arranjas

os cabelos e como a tua boca sorri,

ágil como a água

da fonte sobre as pedras puras,

é assim que te quero, amada,

Ao pão não peço que me ensine,

mas antes que não me falte

em cada dia que passa.

Da luz nada sei, nem donde

vem nem para onde vai,

apenas quero que a luz alumie,

e também não peço à noite explicações,

espero-a e envolve-me,

e assim tu pão e luz e sombra és.

Chegastes à minha vida com o que trazias,

feita de luz e pão e sombra, eu te esperava,

e é assim que preciso de ti,

assim que te amo,

e os que amanhã quiserem ouvir

o que não lhes direi, que o leiam aqui

e retrocedam hoje porque é cedo

para tais argumentos.

Amanhã dar-lhes-emos apenas

uma folha da árvore do nosso amor, uma folha

que há-de cair sobre a terra

como se a tivessem produzido os nossos lábios,

como um beijo caído das nossas alturas invencíveis

para mostrar o fogo e a ternura

de um amor verdadeiro.

domingo, maio 04, 2008

Todas as estrelas

Nando Reis já os citou numa música que ficou linda na voz de Cássia Eller, o que é quase um pleonasmo. Qualquer música ficava bonita em sua voz. Mas eles estiveram presentes também em meus pés. Os primeiros foram suados. Só depois de muita ralação, de muito trabalho e economias feitas com muito sacrifício pude comprar um par. Eram meu sonho de consumo.


Tive outros que me acompanharam em momentos importantes e mantenho agora um par que estava esquecido no fundo do armário. Nem me lembro mais quando e de que forma eles vieram pra mim. Só sei que de repente, como se por um chamado, me lembrei deles. Eles estavam lá, já puídos, com partes estragadas pelo uso e pelo tempo. Já não são mais os mesmos, mas sempre terão a aura que só quem já usou sabe. Só quem já teve um All Star de cano longo sabe a sensação.


quinta-feira, maio 01, 2008

Se é

Se é que é amor

Não há que ter pudor.

Há que se olhar nos olhos

Com a alma limpa e nua,

Tocar os cabelos, a Lua,

Sentir o gosto da estrela louca

No vermelho do céu da boca.


Se é que é amor

Não há que ter temor.

Há que se viver o dia

Como se último dia fosse.

E se vier o fim,

Fim e fim, acabou-se.


Mas se é que é amor

Não há que se tirar nem pôr.

Há que ser assim

Do começo ao fim.

Enorme penhasco

Visto de baixo,

Suave paisagem

Vista do alto.

E daí, por um salto

Sentir o céu, o vento

A fazer do corpo um véu

Até que venha o chão

Duro, firme, real,

Como dor de coração.

sexta-feira, abril 25, 2008

Prosas curtas sobre separações – 6

As separações inevitavelmente interferem na vida das pessoas. As fazem agir de maneira totalmente amorfa. Transformam os caminhos, isolam os ares dentro dos peitos, tornam abruptos os ritmos do coração. As separações fazem pessoas ditas sensatas desistirem de assim ser. Separações geram a dor, a vontade do grito, a boca desesperada. Separações são distanciamentos físicos. Ou não. São como imãs que continuam a se atrair, mesmo não estando em contato. As separações não eliminam a força magnética. Talvez não haja ciência. Haja apenas a consciência.

Página 27

Uma tosse quase periódica com origem na última mesa era praticamente o único barulho que se podia ouvir naquela biblioteca. Era possível perceber que quem tossia já se sentia constrangido, como se atrapalhasse imensamente aquelas duas outras únicas pessoas naquela tarde. Na verdade, ele nem mais percebia as tosses seguidas, como se elas pertencessem ao ambiente, como as lâmpadas, o revestimento do piso. Sobre sua mesa, papéis soltos com anotações, um lápis com uma das pontas mordida, dois cadernos, uma pasta de plástico e uma carta junto a um envelope já aberto e com alguns rabiscos e desenhos. O estado do envelope denunciava sua idade ou o desgaste a que teria sido submetido. Não havia livros em sua mesa.

[A terceira ocupante daquele imenso espaço vazio estava tão mergulhada com seus óculos de lentes grossas em dois grossos volumes que nem imaginava que do lado de fora da biblioteca fazia uma tarde ensolarada de sábado, muito menos se preocupava com a tosse intermitente do fundo do salão, tamanha era sua concentração. Ela não tinha a menor idéia, nem o menor interesse em saber o que os demais estavam estudando ou fazendo.]

Entre os vários papéis soltos com anotações escolheu um mais limpo. Tomou o lápis carcomido e escreveu a palavra olvido. Era uma palavra curiosa para ele. Sua aparência vocal com o órgão utilizado para escutar sons sempre lhe incomodava. Escreveu-a outras vezes, intercaladas com ouvido. Começou lendo-as em voz alta, fechando a primeira letra “o” em ouvido e abrindo em olvido. Quando percebeu, estava quase em igualdade de competição com a moça da tosse intermitente. Então passou a apenas analisar aqueles signos; como poderiam ter surgido duas palavras tão parecidas e com significados tão distintos? E como olvido se encaixava tão bem com sentido! Com traços volumosos, escreveu a palavra Não com “n” maiúsculo e bem maior que as demais letras. À sua mão, apenas aqueles papéis, aqueles cadernos com orelhas, o lápis. Começou a tornar o Não mais caprichado. Acertou as falhas onde não havia grafite, deu serifas aos tipos, arredondou o til e terminou fazendo com que o interior do “o” se transformasse numa magra e quase perfeita elipse. Colocou o papel para o lado e pôs a carta no envelope. Ficou quieto por uns três minutos com as duas mãos espalmadas por sobre o envelope, olhando para frente. Só via as estantes da biblioteca com livros e mais livros, entremeadas pelos corredores que lhe permitia a vista alcançar, na parede do fundo, uma reprodução do quadro O Grito de Edvard Munch. A boca da personagem da tela lhe pareceu familiar, como uma letra “o”. Tomou o papel novamente e com o lápis já quase sem ponta escreveu a palavra FIM, em maiúsculas. A palavra saiu quase colada ao “o” do Não, mas pelo lado de baixo. O papel havia se virado e a esguia elipse havia se deitado e o “m” do FIM a tocava. Com a ponta muito grossa do lápis e a rapidez como escreveu a palavra FIM, o “f” havia se encostado no “i” e virou um “a” maiúsculo. Ficou olhando para aquilo e leu AMO, com um “o” muito maior que o resto. Esboçou um sorriso e pensou que mesmo as coisas findas podem se tornar lindas.

Tomou novamente o envelope nas mãos, tirou de seu interior a carta puída de tanto ser manuseada. Abriu suas folhas, colocou-as sobre a mesa e, com o indicador, tentou reduzir as protuberâncias das dobras — isso explicaria o estado do papel. Leu a carta como que fosse a primeira vez. Parou em alguns parágrafos, tentou entender a colocação de algumas palavras, respirou nas vírgulas, parou nos pontos. Ao fim de cada página, colocava-a por baixo das demais e continuava. O dedo indicador da mão direita sempre tentando eliminar a orelha do canto superior direito da folha. As paradas dos parágrafos, a respiração das vírgulas, o descanso dos pontos. Na última página da carta, demorou-se mais, apesar da menor quantidade de palavras e do maior espaço em branco do papel sem pautas. Fixou-se em algumas palavras, olhou bem para a assinatura, verteu uma lágrima. Com o dedo indicador, limpou o líquido do papel, mas já havia mais um círculo enrugado na carta, como as pontas dos dedos quando ficam muito tempo na água. Voltou seus olhos e num relance leu a palavra insensíveis. Ela estava colocada num contexto que tratava das relações desgastadas de duas pessoas. Instantaneamente, ele pegou a última página da carta e a colocou por baixo das demais. Surgiu não outra folha de carta, mas a página de um livro, arrancada de suas companheiras. Nela, um poema de Drummond falava de coisas findas, de coisas intangíveis, de coração confundido, do apelo do Não. Na parte da página sem tipos impressos, uma dedicatória escrita com tinta azul à missivista, que a devolvia junto à carta.

Ele olhou para aquelas letras angulosas há muito escritas naquele pedaço de papel e se lembrou quantas vezes recitou aqueles versos para ela. Ficou imaginando quantas vezes ela os havia lido. As quatro estrofes com três versos sempre terminados em “ão”, um som tão melancólico, sem existência em outras línguas. Os dois primeiros versos de cada estrofe em rima criavam ritmo em cada vez que eram pronunciados. Mais uma vez ficara extasiado com a beleza daquelas palavras simples, mas que colocadas naquela seqüência, diziam tanta poesia! Quanto tempo aquele pedaço de papel ficou fora do livro original? pensou ele. Não havia data na dedicatória, mas pôde relembrar quando naquela mesma biblioteca, há tempos havia arrancado aquela folha — para espanto dela pelo absurdo do bárbaro ato — e feito aquela dedicatória. As mulheres se encantam quando os homens fazem absurdos por elas. Mas agora encanto não mais havia; e o produto do absurdo estava ali nas suas mãos.

Olhou para a reprodução no fim do corredor, percebeu que quem tossia havia deixado o ambiente, voltou a vista para a mesa, juntou os papéis e os cadernos na pasta plástica, dobrou a carta, guardando-a no envelope e este na pasta. Pegou o poema e dirigiu-se às estantes. Conhecia-as muito bem e assim chegou rapidamente numa seção de Literatura Brasileira. Retirou um livro e foi direto no local onde faltava uma folha. A inexistência dela estava ali, quase a reclamar por sua falta. Pensou em quantas pessoas deixaram de ler aquela maravilha por tanto tempo. Pensou em quanto tempo deixou de ver maravilhas em outras pessoas por ter cometido aquele ato. Colocou a página no vazio, leu o poema por uma última vez, fechou o livro com sua dedicatória dentro e o colocou no seu lugar. E se foi.

A terceira pessoa estava tão mergulhada com seus óculos de lentes grossas em dois grossos volumes que nem percebeu que estava sozinha naquele mundo silencioso, perdendo um pôr de Sol deslumbrante que acontecia do lado de fora da biblioteca.


domingo, abril 13, 2008

Branca

A luz branca da luminária

Infesta o negro do quarto

E salta aos olhos,

Como num trampolim,

Pela folha em branco de papel

Do começo até seu fim.


E assim,

O rastro negro do grafite

Num relance, por um palpite,

Se aproxima do alcance

Da folha em branco de papel

E dos olhos salta o céu,

a alma, a falta, a calma,

Se espalhando

Como um querubim

Pela folha em branco de papel

Do começo até seu fim.

domingo, abril 06, 2008

Sem título

O tempo vem e alerta
Pela crueza de sua ótica
Sobre a possibilidade aberta
E absolutamente certa
Clara e iminente quebra
Da ducentésima quinta vértebra
Da espinha dorsal da estrutura
Que teimosamente atura
Agüenta, chora, ri e celebra

O tempo vem e aperta
Impiedosamente a carótida
Torna a visão mais cinzenta
Torna a tarde mais cinzenta
Desvia a possibilidade de noite

O tempo vem e seu açoite
Faz derrubada a alma
Transfigura a intenção em calma
Desterra a chama e a torna
Morna, inerte, fria
A antidisplasia

sábado, março 29, 2008

O advogado, por Marcelo Spini

Temos um amigo advogado. Tem voz de advogado. Tem jeito de advogado. Conheço-o desde os tempos de colegial e meu pai conhecia o pai dele. Eu mesmo tenho algumas histórias que, de certa forma, têm o pai dele dentro delas. Um dia elas podem aparecer por aqui.

Mas o Marcelão resolveu escrever algo sobre um fato ocorrido com este advogado amigo nosso. Era algo pra enviar ao Fantástico, mas acabou ficando guardado em algum HD por aí. O próprio advogado leu o texto, disse que foi assim mesmo que aconteceu e recentemente autorizou-me a publicar o texto neste blog. Quem escreveu ainda não tem seu blog, então, segue o texto escrito por Marcelo Spini.


O ADVOGADO !!!!

Neste breve relato, descreverei um fato ocorrido com um grande advogado da cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, distante 550 quilômetros da capital, Belo Horizonte. Por se tratar de um grande advogado que representa várias grandes instituições, não mencionarei os seu nome.

Após ser informado que teria que fazer uma defesa oral de uma grande causa em Belo Horizonte, passou dias lendo o processo para conhecer todos os seus detalhes. No dia da viagem, enquanto aguardava o vôo na sala de embarque, continuava devorando todas as páginas daquele imenso processo, pois tinha total convicção, que sairia vitorioso.

O vôo estava marcado para sete da manhã. Mineiro que é, chegou faltando dez para as seis, tentando não ter nenhum problema no check in. Acomodou-se e mergulhou na leitura. Pensando ter passado alguns minutos, olhou as horas, foi um espanto. 7h20min! Juntou todos os documentos, levantou-se desesperado e foi perguntar sobre o vôo. Recebeu a triste notícia: mesmo estando o Brasil passando por uma crise aérea, aquele bendito (ou maldito) vôo saiu no horário.

Desesperado, disparou um plano “B”. Tinha que conseguir chegar em Belo Horizonte antes do almoço, pois a “coisa” estava marcada para três da tarde. Foi de guichê em guichê para tentar outro vôo e nada. Até que alguém lhe falou sobre um táxi aéreo que também tinha como destino a Belo Horizonte. Ao se aproximar da área de embarque, com a sorte que sempre deve acompanhar um grande advogado, tinha um amigo que também estava indo para lá e poderia lhe ajudar a conseguir uma vaga no vôo. Após ver a possibilidade de embarcar e negociar o preço estava que era só alegria, pois este grande advogado tem um pezinho na Turquia. Embarcou.

A aeronave era pequena e agora com este novo passageiro, estava lotada. Piloto e mais sete passageiros. Como sempre nesses ambientes, apenas uma mulher. O vôo partiu sem problemas aparentes, mas um fato iria fazer com esta viagem fosse marcada de maneira ímpar.

Após alguns minutos de viagem, o Dr. começou a sentir algumas cólicas, que o fez suar frio lembrando da feijoada que havia comido no dia anterior. Num espaço tão pequeno não era possível soltar um punzinho distraído, pois todos iam notar e não teria como culpar ninguém. E aquele advogado continuou ali firme. Cada minuto que passava a situação piorava, cólicas, gases, barulhos estranhos. Enquanto todos riam, ele ficava cada vez mais sério.

Passado mais alguns minutos o piloto informou que estavam chegando ao destino, mas o Dr. já não suportava mais. Após uma rápida explicação da situação perguntou onde era o banheiro. Após algumas risadas foi informado que estava sentando no banheiro. Não havia outra saída. Como retornaria da viagem no mesmo dia, não havia levado outro terno, tinha que resolver a situação ali e agora. Após algumas desculpas desenxabidas, levantou a tampa de seu acento, desabotoou o cinto, abaixou parcialmente as calças, pois no recinto havia uma mulher. Enfim, pôs fim ao seu sofrimento. Neste momento se ouvia apenas o som do motor do avião. A cena era desoladora. No entanto, mesmo ali ele tentava manter a pose. O aroma nada agradável dentro da aeronave fez com que todos os passageiros e piloto ficassem sem respirar por vários minutos. Ele queria parar de suar, mas após resolver uma parte desta situação, lembrou que não havia visto uma ducha higiênica ou papel. Então resolveu ficar ali até o pouso da aeronave, que deve ter demorado varias décadas. Após o pouso, ele se manteve ali impávido. Se despediu de um por um, até que todos desembarcaram e ele pôde falar com o piloto, fazer a higiene e descer do avião para uma missão que agora parecia tomar pirulito de criança.

E tudo acabou bem, ganhando a causa. E agora, esquecer estas poucas horas que pareceram uma eternidade é algo que seria muito bom.

E esqueceria, se o Marcelão não escrevesse esse texto e eu não o publicasse aqui nesse blog.

sábado, março 22, 2008

Hallelujah

Jeff Buckley morreu em 1997 com uma carreira ainda por fazer. Foi nadar num afluente do Mississipi e enquanto um amigo o escutava cantarolando “Whole Lotta Love”, algo aconteceu e seu corpo só foi encontrado uma semana depois, bem longe do local. Quem escutar sua voz estará irremediavelmente ligada a ela. Não dá pra esquecer. Buckley interpretou uma música de Leonard Cohen que acabou virando uma lenda. Um hino. Já a escutei por pessoas que nem imaginava que gostavam dela. É música de se ouvir de olhos fechados. Como num dia de hoje.




Hallelujah, com Jeff Buckley

(Leonard Cohen)

I've heard there was a secret chord

that David played and it pleased the lord

but you don't really care for music do you?

Well it goes like this the fourth, the fifth

the minor fall and the major lift

the baffled king composing hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Well your faith was strong but you needed proof

you saw her bathing on the roof

her beauty and the moonlight overthrew you

she tied you to her kitchen chair

she broke your throne and she cut your hair

and from your lips she drew the hallelujah.

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Baby I've been here before

I've seen this room and I've walked this floor

You know, I used to live alone before I knew you

And I've seen your flag on the marble arch

and love is not a victory march

it's a cold and it's a broken hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Well there was a time when you let me know

what's really going on below

but now you never show that to me do you?

but remember when I moved in you

and the holy dove was moving too

and every breath we drew was hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Well maybe there's a God above

but all I've ever learned from love

was how to shoot somebody who outdrew you

And it's not a cry that you hear at night

it's not somebody who've seen the light

it's a cold and it's a broken hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Hallelujah, hallelujah, hallelujah, hallelujah

Hallelujah

Prosas curtas sobre separações – 5

Como o óbvio título diz, essa série trata de separações. Mas separações não são só físicas. Elas podem ser feitas mediante a colocação de um Oceano Atlântico entre duas pessoas, como no texto do mês passado. Ou não. Ou podem ocorrer numa simultaneidade de presenças absolutamente brutal.

Afinal de contas, o que são separações?
Mais que uma mulher

Era uma tarde clara, daquelas quando a época do ano faz com que o Sol cruze a abóbada celeste bem ao Norte, como a entrar pelos olhos horizontalmente. Era um tempo que o sustento era difícil para os profissionais de sua área de atuação. A recessão que o país passava sufocava os negócios imobiliários e qualquer trabalho, por menor que fosse, ajudava no orçamento, permitindo que os credores fossem enfrentados com mais coragem.

Seu possível cliente — um investidor com dinheiro para fazer uma grande compra, algo raro naqueles tempos — passou para pegá-lo com a intenção de lhe mostrar um imóvel que estava interessado e queria um trabalho de avaliação. Ele não sabia que imóvel seria objeto do trabalho, pois o cliente queria confidencialidade no negócio. Havia conseguido as chaves com um dos proprietários e iria visitar o imóvel, fechado há anos, com um profissional que pudesse lhe abastecer de informações para sua tomada de decisão. O trânsito insuportável do lado de fora daquele carro alemão parecia reservado apenas aos mortais, que não dispunham do silêncio e do ar refrigerado que envolviam aquele ambiente refinado, com bancos de couro, vidros escuros e blindados, amplo espaço nos bancos traseiros e ainda a despreocupação com o ato de dirigir, reservado a um rapaz de uns vinte e cinco anos, com óculos e terno escuros a esconder músculos arduamente trabalhados.

O caminho percorrido diminuiu-lhe a surpresa de parar bem em frente àquele velho clube noturno, há muito tempo fechado e abandonado. Sua atual fachada se reduzira a um muro construído porcamente no alinhamento do imóvel, com um portão de chapa metálica de pequena espessura pregado sobre um quadro de madeiras toscas, a servir de entrada para o imóvel. Quem não conhecia o interior nem imaginava o que ali existia. Ou existira. O muro, encimado por uma verdadeira parede de outdoors, era como enormes barbas grisalhas e mal cuidadas e profundas rugas a esconder um rosto que antes já fora altivo e alegre, característico dos jovens. Tentava enxergar por entre as placas publicitárias, buscando a velha e linda fachada afastada e majestosa do clube, concebida nos anos 50, quando as pessoas tinham na alma o otimismo pós-guerra, que o Mal havia sido vencido, que tudo iria ser maravilhoso. Foi quando o investidor lhe convidou a entrar. O motorista já havia aberto o portão e voltara para cuidar do automóvel; entrou e pôde ver como o tempo pode ser cruel com as coisas bonitas. Sua memória fazia emergir imagens do passado para se colar àquela realidade, talvez na tentativa de maquiar aquela feiúra, aquela fachada descuidada. Tentava encaixar pastilhas sobre pilares pelados, vidros bisotados sobre esquadrias apodrecidas pela ferrugem, carpetes vermelhos sobre uma rampa esburacada. Tentava florescer arbustos sobre chão coberto de lixo, tentava vislumbrar dois pequenos leões de pedra que guardavam a entrada e agora não mais presentes. Tentava sentir o delicioso aroma de pipoca feita na hora num carrinho na calçada e não o cheiro ardido de urina, indicando a presença mais que humana naquele ambiente. A memória insistia em querer se sobrepor à realidade, as tintas de tempos maravilhosos passados naquele prédio.

Os dois entraram no imóvel com o investidor fazendo perguntas a respeito das características da construção, da localização. Seria razoável aproveitar a estrutura do prédio? Ou apenas utilizar o terreno, demolindo tijolo por tijolo? As perguntas lhe vazavam os ouvidos, pois sua atenção se fixara na tentativa de sua memória em colar sobre as imagens que ia vendo, aquelas que há muito havia visto. Colar arte final sobre rascunho. Sim, uma espécie de rascunho invertido, pois este já não trazia a expectativa de evolução para algo finalizado, construído. Era a própria imagem da destruição, não só do aspecto físico do prédio, mas também do que ele representou um dia, quando jovens lotavam o lugar em busca dos amigos, dos amores, das emoções próprias da idade. Era agora um prédio escuro, mas isso era lógico. Nunca havia entrado ali com as luzes apagadas. Toda aquela entrada era sempre bem iluminada nos tempos de luz. Holofotes direcionados para quadros na parede jogavam luz indireta sobre as pessoas. A iluminação daquele ambiente era de um bom gosto incrível. As pessoas não se sentiam agredidas pela claridade, ao contrário, os pontos luminosos eram em sua maioria imperceptíveis. Apenas os objetos iluminados recebiam destaque e não a fonte luminosa. As tapeçarias nas paredes, os quadros, as esculturas, uma fonte simpática a jorrar água sobre si mesma, as pessoas. Estes eram os atores principais daquela peça que acontecia naquele tempo. Naquele momento, observando o ambiente, a memória lhe trazia os rostos das pessoas que freqüentavam aquele lugar e elas eram bem diferentes da realidade de então. Os rapazes e as moças — como era difícil se lembrar com estas palavras: rapazes e moças, vocabulário mais arcaico para estes dias difíceis... — tinham aspectos dos mais estranhos, visto a evolução da moda e dos costumes. Os caras — sim, já eram assim chamados — que gostavam de se mostrar mais atuais cortavam seu cabelo como John Travolta nos filmes em que à época faziam sucesso. Outros ainda mantinham o que sobrou do final dos anos sessenta e início dos setenta. Cabelos compridos como os das bandas de rock que apareceram naquela época, preenchendo o vazio deixado pelos Beatles e ocupando os corações e mentes daqueles jovens que não tiveram a oportunidade de ver John, nem Paul, nem George, nem Ringo. Mas algo era comum a todos e os tornava uma tribo: as calças de boca larga, a rodear toda a circunferência dos sapatos plataforma. Algumas ainda com cintura baixa a deixar a já aposentada Brigit Bardot com saudades de seu tempo. Inimagináveis barrigas masculinas ficavam à mostra, deixando em vantagem os adolescentes que praticavam algum esporte. Talvez isso explicasse como o esporte naquela década era tão valorizado pelos jovens daqueles anos. As meninas eram quase uma tribo única. Cabelos, em sua maioria compridos — lisos conviviam com enrolados sem nenhum preconceito, pois não havia ainda a ditadura da pranchinha, a nivelar belezas das meninas adolescentes —, saias rodadas, meias de lurex — para quem nunca viu, uma malha com pontos brilhantes — dentro de sandálias glamurosas. Pontos brilhantes. Talvez esse fosse o ponto. Ou os pontos que faziam a diferença para ele. As pessoas eram pontos brilhantes e era assim que ele as via. Sentia-se com um deles, naquela época. Havia decidido assim permanecer e por isso, se juntara a outro ponto luminoso. A idéia era ampliar a luz, expandi-la para outras fronteiras.

Nesta hora, quebrando a ligação com os tempos passados, o investidor lhe chama a atenção para a amplitude do lugar. Estavam no salão principal da construção e mesmo para um capitalista convicto, aquilo era maravilhoso e ele falava dos tacos da madeira nobre em composição geométrica que não mais existia naqueles dias atuais, dos forros de gesso em formato de ameba, típicos dos anos 50, das colunas com desenhos e grafismos em que a cultura dos anos de globalização banalizaram. Ele sorriu e sentiu que mesmo alguém que apenas se preocupava com o retorno sobre o investimento também reconhecia aquilo que ele um dia havia reverenciado. Olhava para o teto quando o investidor — tomado de um entusiasmo incomum aos que se preocupam apenas com o saldo bancário —, puxou as grossas, velhas e empoeiradas cortinas, deixando que os raios de sol penetrassem no ambiente por enormes esquadrias guardando ainda vidros embaçados e sujos. Pelo horário, o Sol já se preparava para deixar aquelas paisagens. Ia inclinado, quase a tocar o horizonte, mas com força suficiente para jorrar seus fótons por sobre um até então não notado globo de espelhos preso ao teto do salão. O ato de abertura das cortinas, não apenas por si só, mas pelo jorro no globo, iluminaram o ambiente caquético. Pedacinhos de luz se espalharam pelas paredes, pelo teto, pelo chão. Espalharam-se pela sua mente, pela sua memória. Imediatamente lhe veio nos ouvidos — ouvidos distantes, de memória apenas — uma música daqueles anos. Era uma música que tocara à exaustão naquela época. Os irmãos que a cantavam faziam rios de dinheiro com músicas lentas — como os caras daquela época gostavam de músicas lentas... — e outras, podemos dizer, de balanço. Mas a que ele se lembrou no momento, vendo aqueles pedacinhos de luz espalhados pelo ambiente, foi uma que dizia algo sobre uma mulher que fazia parte de tudo que ele fazia, cujos braços o fazia se sentir como se tivesse encontrado o paraíso. Braços que deixara descansar sua cabeça, sua alma. Braços que havia segurado, conduzido pelas notas daquela música que dizia algo sobre uma mulher que era muito mais que uma simples mulher. Para ele, muito mais que uma mulher. Naquela época, ele achava que passados mil anos, ele voltaria a se apaixonar por aquela mulher. Imaginava que se a perdesse, morreria. O globo estava parado — o movimento daqueles tempos o embriagava — mas refletia pontos por todos os lados. Olhou para seu lado e nem o investidor viu. Poeira, tempo putrefato, dias passados era o que via. Sua memória cansada foi buscar nos recônditos do cérebro as lembranças daqueles dias. Os cabelos, a saia rodada, os olhos. O conjunto maravilhoso flutuando no ar, na memória, no ar agora empoeirado. Onde estariam agora todos aqueles elementos? Onde havia se escondido aquele olhar? E aqueles cabelos, aquela pele de seda? Aquele espírito livre, disposto a mudar o mundo, a beijá-lo com lábios não aflitos de vida, mas ansiosos, elevando a alma, as almas, a um pedestal elevado, a um altar humano, demasiadamente humano. Onde estaria aquele coração pulsante, a ritmar o colo branco, vibrando os seios ansiosos de vida? Onde estaria a sede, a fome, a vontade?

A razão começou a lhe trazer para os dias atuais. Enquanto os pontos luminosos lhe levavam ao passado, flashs invertidos — como negativos de fotografias — lhe faziam se sentir nos dias atuais. Naqueles que seriam os dias futuros daqueles maravilhosos dias. Pensava como seria no final do dia ao voltar para sua casa. A história não havia sido como imaginara, como a música dos Bees Gees descrevia. Na sua casa havia outra mulher, diferente daquela que recebera aqueles pontos de luz refletidos pelo globo de espelhos. Diferente em alma. Diferente em olhos. Diferente em seios, em lábios, em flancos nem tanto agora ansiosos.

A razão — ou as palavras objetivas do investidor — lhe traziam à realidade. Valia ou não a pena o investimento? Jogar ao chão ou restaurar aquele imóvel? Sugeriu o fechamento da cortina, pois o Sol já se ia; propôs a saída do salão, já que a poeira invadia os canais nasais. Incentivou a observação externa do prédio — a alma já caía em prantos.
Do lado de fora, um rapaz de uns vinte e cinco anos, com óculos e terno escuros a esconder músculos arduamente trabalhados, guardava um carro alemão, escuro, como a noite que se avizinhava. A última visão do edifício, o último elogio ao elemento imobiliário, ao ente cosmopolita, indivíduo urbano daquela comunidade de olhos cegos, de ouvidos moucos, de boca rota.

O compromisso feito de uma avaliação absolutamente profissional, indicando as melhores opções de retorno, buscando alavancar os investimentos com melhores taxas de retorno e menor pay back estariam disponibilizadas na semana posterior. O cadeado dourado fechava os toscos portões enquanto fechavam sobre si mesmos as portas blindadas com couro de cor bege, elegantes e suaves. O ar refrigerado já estava ligado para maior conforto dos ocupantes do automóvel que se mostrava superior aos demais veículos daquela via transversal. A movimentação da máquina, a compenetração do trabalho do motorista, a ansiedade por retorno sobre o capital do investidor, confrontavam com a sua vontade de voltar para sua casa. Iria olhar para os olhos da mulher que lá estava. Iria tentar sentir o coração a pulsar sob os seios. Seria ela mais que uma mulher?

Música: More Than a Woman
Intérpretes: Bee Gees



sexta-feira, março 21, 2008

Sem título

Se de repente

Pinta um sim,

Pinta um Chaplin

A nanquim

No caderno de latim,

Que não existe mais.


quinta-feira, março 20, 2008

Nua e crua

Pura pureza

Bela beleza

Feia feiúra.


Paúra

De olhar para a vida

E ver

A nua e pura

Feiúra

Da beleza.


Crueza

Do corpo estendido no plano

Na mesa

E os pêlos

Pretos

Proeminentes

Distantes

Vibrantes

Absolutamente

Cativantes

Pelos perfumes dos órgãos

Que brotam dos grãos

Apaixonados pelas mãos

Donas dos nãos

Donas dos sins

Dos dedos trêmulos

Dedos afins

Êmbolo

De acesso ao fim.


sábado, março 15, 2008

Arte

Já há muito tempo que o cara se dedica à arte e toda vez que nos encontramos para uma cerveja é ele quem cuida da carne. Já evoluiu de tal forma que consegue tomar conta de tudo sem fazer aquela bagunça que a gente sempre faz num churrasco. E o Marcelão já ultrapassou a barreira que separa aqueles que apenas gostam de fazer daqueles que fazem porque gostam. Aí então, uma carne “assim nem tanto” fica maravilhosa sob sua condução. O que dizer então de uma picanha maturada no limiar do estado de mal passada? A seguir, uma obra de arte com a assinatura de Marcelo Spini.

domingo, março 09, 2008

Alguns amigos

Encontrar com amigos é uma delícia! De certa forma, nos renovamos um pouquinho quando encontramos aqueles que nos viram ainda jovens. Buscamos memórias, contamos “causos”. A cerveja que embala esse encontros parece conter também um certo elixir da juventude. Como se recuperássemos algum tempo, se não alguns meses, pelo menos alguns momentos trazemos de volta.

Na casa do Merola, em homenagem à Cláudia, muitos daqueles de antigamente estavam lá. E sempre sai uma ou outra história. O Tribuna me autorizou a publicar uma determinada história aqui no blog, mas farei isso numa outra oportunidade. Mas publico uma outra dele, acontecida nos tempos em que tudo era muito simples. De uma simplicidade que nos faziam felizes.


A Pipoca, o Tribuna e o picolezeiro

Sempre se diz que quando se conta um conto se aumenta um ponto. Neste caso, acho que acrescento o milésimo primeiro, tantas vezes ele foi contado. Várias versões correm por aí e esta é apenas mais uma; e claro, não é a verdadeira, principalmente porque eu não estava lá. E mais, se estivesse, teria colocado meu ponto também. Mas vá lá. O que importa não é como aconteceu. A importância está em lembrar, escrever, lembrar, reviver, lembrar.

Ele transformou-se num respeitado advogado, eficiente em suas causas e referência para seus colegas. Mas para os amigos de antigamente era e continua sendo o Tribuna – certa vez no cursinho pré-vestibular, já sem paciência de tanto escutá-lo conversando na sala de aula, o professor disparou: “Pô! Você não pára de falar! Tá achando que está numa tribuna?”. Foi o suficiente.

Mas naquela época ele apenas pensava em se tornar um advogado. Ou não. Tinha acabado de fazer o NPOR e as doutrinas do Exército Brasileiro ainda pairavam sobre sua cabeça. Naquela tarde, ia para um compromisso, um estágio ou algo que necessitasse o uso de mangas compridas num calor de cerrado. Mas o Kenner e o Júnior não tinham um compromisso tão sério. O único objetivo naquele dia era fazer aquele automóvel que eles tinham em sociedade funcionar. Era um exemplar hoje raro de uma camionete Ford V8, nas cores branca e verde claro, do início dos anos 60, daquelas que se trabalha dentro do capô. Lataria dura como a vida. Comprada com suas economias, (toca fitas Mecca, conhecido como comedor de fita) sempre recebia todas as atenções da dupla. Eles nunca haviam fumado. Não haviam se encontrado com Bob Dylan, gostavam mesmo era de mecânica e cerveja. A camionete até nome tinha: Pipoca era como uma namorada dividida por dois primos. As câmaras de ar saiam dos pneus, como que pedissem liberdade. Óleo pingava por onde ela parasse. Desnecessário dizer que foi comprada por preço baixo porque quase nada nela funcionava. Mas quando funcionava, o seu ruído era um espetáculo à parte. Todos na rua olhavam para seus ocupantes: Kenner e Júnior, mais algum exultante convidado. Naquele dia, a Pipoca até que estava funcionando, com apenas um detalhe: quando em movimento, não podia ser parada porque seu motor apagaria e nova jornada capô a dentro deveria ser implementada. Foi quando Tribuna chegou ali na Princesa Isabel e perguntou se não podia ganhar uma carona. Estava indo para seu estágio num escritório de advocacia e chegar lá sem nenhuma mancha de suor na camisa de mangas compridas não seria nada mal. Kenner estava mergulhado dentro do motor da "poderosa" tentando destravar as marchas. Os dois "mecânicos" disseram que tudo bem. Podia. Mas não ia dar para parar porque senão a máquina apagaria e o trabalho deveria ser feito novamente.

— O que que é isso? Vocês estão pensando o que? bradou um exaltado Tribuna.

— O cara ficou bravo com a gente... pensou um dos dois.

— Vocês esqueceram que eu sou Tenente da reserva? No Exército fiz várias operações que a gente saltava de um caminhão em movimento. É simples. Na hora de descer, eu abro a porta e salto. Vai ser mole!

Os dois olharam um para a cara do outro, nenhum tinha feito serviço militar, não sabiam o que era saltar de um caminhão verde oliva em movimento, com arma e mochila, mas se ele estava dizendo que era mole, era mole. Vamos lá. Feita a trabalheira de ligar e manter em funcionamento a geringonça estavam lá o Kenner na direção, o Júnior no meio e o Tribuna na janela. Para fora dela o cotovelo embrulhado numa camisa de mangas compridas, calças pretas compondo um figurino de um cara sério, Tenente da reserva e futuro advogado, num corpo esguio e alto, ainda com os músculos formados pela mãe Pátria. A Pipoca deu uma rateada, cuspiu um pouco de fumaça, mas aquele maravilhoso ruído mais uma vez chamou a atenção de quem estava por ali. Os três saíram orgulhosos, subindo a Princesa Isabel rumo à praça Raul Soares. Alguns malabarismos do então futuro piloto de rally e secretário municipal para não atropelar Dona Páscoa, nem bater na primeira esquina foram necessários, mas a máquina ia muito bem. A conversa corria solta, falavam da maravilha que era aquela máquina, de como implementariam melhorias naquela conquista. O mundo era bem mais bonito e pequeno do alto daquela cabine. Enquanto isso o Sol castigava o asfalto da Cipriano Del Fávero.

Logo após passar pela praça Sérgio Pacheco — sob o viaduto que ligava o centro da cidade à avenida Fernando Vilela — Tribuna fala que vai descer. Pedir para diminuir a marcha nem pensar. O cara já tinha saltado de um caminhão com um fuzil FAL carregado! Apertou a mão do Kenner, a do Júnior, agradeceu a carona e ouviu um tímido pedido de cuidado. Combinaram que à noite poderiam ir tomar uma cerveja no Willian. O Kenner prometeu ao Júnior que, se fossem, não usaria nenhum sapato dele (do Júnior!) nem o perfume novo que ele havia ganhado. O Tribuna abriu a pesada porta, pisou naquele largo estribo que só as antigas camionetes tinham, fechou a porta. Mais uma saudação e pulou. Como Kenner não sabia pular de um veículo em movimento, perguntou ao Júnior: “E aí?” Momentos de suspense... “O Tribuna caiu!” disse Júnior. Kenner pensou, o que era pior: se o encavalamento das marchas ou o tombo do dito cujo. Rapidamente olhou pelo retrovisor interno para certificar-se do acontecido. O que viu foi algo rolando pelo asfalto, como se fosse um pacote com camisa de mangas compridas e calças pretas. Claro que tiveram de parar e o motor da Pipoca mais uma vez apagou. Júnior olhou para trás e o Tribuna já havia se levantado e um picolezeiro — que passava pelo local tentando implementar seu negócio — tentava ajudar e pelo gestual do Tribuna parecia que ele falava:

— Não se preocupe! Está tudo bem! Sem problemas! limpando os ombros, as coxas e o orgulho próprio ferido.

Quando os dois chegaram perto viram que uma camisa de mangas compridas a menos existia no mundo e um “causo” a mais surgia para o Kenner e o Júnior, mestres na arte de contar “causos”, espalharem para todos os amigos.

Até hoje, quando um dos dois contam este fato junto a algumas garrafas de cerveja, todos, inclusive o ator principal, choram de rir. Talvez pelo fato de nunca terminarem o caso — impossibilitados pelo riso —, nunca se soube se a Pipoca logo funcionou, se o Tribuna voltou para casa, se compraram um picolé ou se foram à noite tomar algumas cervejas.

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Nada será como antes

Às vezes não nos damos conta de que nada será como antes. Em todos os sentidos. O jeito como levamos a vida muda todo dia e nem percebemos. Ou percebemos, mas pelo susto da constatação ou pela ilusão de que é algo momentâneo, fugimos da realidade. Em todos os sentidos.

Às vezes não nos damos conta, mas se você está lendo isso, você está conectado à internet. Tem feito tanto isso que nem percebe mais. Usa programas, baixa músicas, lê notícias. Visita amigos, joga CS, faz trabalhos da faculdade. Expõe seu CV, lê e-mails, reencontra pessoas. Os hábitos vão mudando e você nem percebe. E é assim mesmo. No final do século IXX o empresário americano Thomas Edison viabilizou algo que mudou radicalmente os hábitos da sociedade da época. A eletricidade entrou nas casas e nas empresas e revolucionou o modo de vida. Mudou a cultura. Há alguns anos a internet vem fazendo isso também agora. Tem gente que ainda não percebeu. Ou percebeu, mas pelo susto da constatação ou pela ilusão de que é algo momentâneo, foge da realidade. Nada será como antes.

E tem pessoas que prevêem muito mais mudanças aí. Um especialista em tecnologia e ex-editor da revista Harvard Business Review chamado Nicholas Carr lançou um livro nos Estados Unidos (The Big Switch: Rewiring the World, from Edison to Google) em que dá sua visão do novo mundo da tecnologia. Ele defende a idéia de que cada vez mais a internet vai se parecer com a eletricidade no final do século IXX. Assim como a eletricidade, vamos nos conectar a uma rede de informações e pagaremos de acordo com o consumo. A idéia dele é que se precisarmos de um programa ou qualquer recurso de tecnologia, usaremos e pronto. Para que estocar? O uso racional dos recursos, tão avançado nos processos produtivos das empresas de ponta e rentáveis chegará aos apetrechos de tecnologia. Tudo o que acontece no nosso computador, desde o processamento ao armazenamento poderia ser feito na internet. O PC passaria a ser apenas o meio de acesso.

Nas empresas o impacto seria monstruoso. Muda toda a forma de agir, de gerir. Já existe um site que fornece serviços de CRM (Customer Relationship Management ou Gestão de Relacionamento com Clientes), com programa totalmente embutido na internet. “Jogando no lixo” os servidores dos clientes, a Salesforce.com faturou 500 milhões de dólares em 2007, com 38 000 clientes.

Às vezes não nos damos conta, mas nada será como antes.

Leia mais. E mais.




sábado, fevereiro 23, 2008

Prosas curtas sobre separações - 4

Muitos de nós passamos por questionamentos brutais, por perguntas que não querem calar. Duvidamos de coisas até então ditas como verdades, olhamos para os lados com olhos diferentes. Miramos o horizonte com olhos que parecem não ser os próprios. E às vezes é necessário entender que viver nada mais é que estar num eterno estado de mudanças. Penetrar nesse mundo é penetrar na vida. Assim se parece.

No mês passado postei aqui um texto onde alguém com mais experiência se questiona, busca por coisas e pessoas que há muito se pareciam perdidas no tempo e no espaço. Agora, de certa maneira, isso se repete aqui, mas com enfoque diferente. Um olhar na necessidade de mudar até os ossos e continuar a ser a mesma pessoa. Talvez nós podemos mudar tudo e continuar a ser a mesma pessoa.

Viagem com Goethe

Ela estava naquele aeroporto, mas seu pensamento não. Estava na assustadora massa de água salgada que teria que transpor para realizar sua aventura. Pensava o pior. O avião no oceano, pedaços de tudo espalhado por onde a vista alcançasse. E aquela massa brutal de água por baixo do seu corpo. Balançou a cabeça e sentiu aqueles pensamentos escaparem como água por cabelos molhados. Começou a se lembrar de Goethe. Rapidamente enfiou a mão na bolsa de tecido impermeável e sentiu que não havia esquecido o livro. Imaginava-se caminhando entre ciprestes, em cidades medievais, conversando com velhos que lembrassem seu avô. Tirou o livro da bolsa, puxou a capa e leu na orelha: “Sigo sendo a mesma pessoa, mas creio ter mudado até os ossos”. Queria se sentir na viagem assim, do mesmo jeito que Goethe se sentiu naquele tempo, há mais de duzentos anos, bem mais que seus quase vinte. Mas percebeu que já se sentia desta maneira. Os acontecimentos das últimas semanas tinham feito até seus ossos mudarem. Se fosse há um ano atrás, a decisão de vender seus poucos bens para empreender esta viagem seria impensável. Se lembrava de como era metódica e nem um pouco dada a arroubos ou aventuras. Era apenas mais uma dedicada universitária que se formaria com notas altas, paparicada por professores orgulhosos de sua cria. Professores. Seu pensamento tinha saído da morte eminente em águas internacionais para cair onde ela não queria, de onde queria fugir. Não teve jeito. Foi preciso lembrar-se dele, como numa necessidade de vomitar o que lhe revolvia o estômago, o coração. Lembrou da primeira vez que o viu, na sala de aula, no terceiro dia de faculdade. Sentara-se na primeira fila de carteiras, como havia feito por toda sua vida escolar; ele chegou à beira do tablado de madeira, que servia de uma espécie de palco. Ela sentada, ele de pé. O campo de visão que ela tinha era amplo, mas só tinha olhos para a apertada calça jeans do professor. Olhou tanto, tentou tanto imaginar seu interior, que ele não pôde deixar de perceber a avidez daqueles olhos azuis. Não foi necessário mais que um mês para se envolverem numa ardente relação, meio estranha, meio implacável. Um já meio grisalho professor de quarenta anos e uma branquela miúda de dezoito. O ar nas aulas parecia eletrificado e esta eletricidade afetava os demais alunos, que rapidamente perceberam o que acontecia. E quanto mais pessoas começavam a perceber a relação dos dois, mais ela procurava ser como sempre foi. Fechada em si mesma, dedicada aos estudos, devorando livros, tirando as melhores notas da turma. Sentando-se na primeira fila.

Por um momento, uma enorme algazarra lhe roubou a atenção. Uns trinta metros à frente de onde estava sentada, um grupo de pessoas recebia alguém que chegara de longe. O viajante dizia em voz alta – praticamente gritava – como era bom voltar ao seu país, como o cheiro de sua terra era bom. Imediatamente ela se lembrou de uma frase do livro que segurava contra o peito: “Signor, perdonate! Questa è la mia patria!”. Abriu um sorriso, se lembrou do trecho do livro, em que uma medonha cantoria havia assustado Goethe, e de certa forma, desculpou aquele senhor por assustá-la também. Começou a pensar se se comportaria assim também quando retornasse. Iria mudar até os ossos e seguir sendo a mesma pessoa? Iria gritar num saguão de aeroporto para tantas pessoas sua saudade de seu país? Abraçaria e beijaria as pessoas como aquele senhor estava fazendo? Percebeu que poderia sim, pois ter entrado de cabeça num caso de amor sem futuro, com um homem casado, absolutamente apaixonado por sua mulher de anos de convivência já foi uma mudança até os ossos. Ter deixado para trás este estranho caso de amor foi outra óssea transformação. Ter trancado a matrícula na faculdade. Ter vendido carro, terreno. Ter posto as mãos em todas suas economias. Ter decidido imitar, ao menos em parte, o que Goethe fez. Ter tomado a decisão de partir como Goethe fez, no anonimato, sem que ninguém soubesse. Apenas cartas postadas horas antes de sua partida contariam para pessoas escolhidas seu destino, mas não sua volta. Pela primeira vez estava analisando como havia feito várias mudanças num período tão pequeno de sua vida, ainda tão inicial. Imaginava-se, até então, como uma personalidade pronta, perfeita, sem necessidade de alterações. Imaginava-se intelectualmente encaminhada e ponto final. O que mais poderia importar se não o alcance de seu sonho? Não havia percebido quanto que mirar num sonho impede de sequer olhar de relance para outros. Era excessivamente focada em suas atividades, buscando sua meta com a firmeza dos grandes executivos de grandes corporações. Passaria por onde e por quem fosse necessário para atingir seu objetivo. Mas naquele momento, sentada num banco de aeroporto, à espera do anúncio de embarque, percebeu que já havia mudado até os ossos. Parecia uma pessoa totalmente diferente. Era louca antes ou tornou-se agora? Não conseguiria responder, mas se sentia segura e tranqüila quanto ao desejo de chegar ao seu destino. E para vislumbrá-lo melhor, abriu o livro e procurou as aquarelas, os nanquins, os rascunhos realizados há séculos, retratando as paisagens que ela ansiosamente aguardava encontrar.

Fechou o livro, olhou para seu relógio quase que simultaneamente ao aviso de embarque ecoando por todo o aeroporto. Teve a sensação que o aviso era unicamente para ela e como se assim fosse, se levantou e foi atender à solicitação. Jogou a bolsa-mochila às costas, arrumou o prendedor nos cabelos e, no rápido movimento da cabeça, percebeu com o canto dos olhos uma figura de aspecto familiar parada no mezanino do saguão, com as mãos apoiadas no guarda-corpos. Sentiu um frio na espinha, mas se conteve e não voltou seu olhar para ela. Começou a caminhar para o portão de embarque imaginando se o vulto que havia visto poderia ser ele. Se fosse, não teria descido? Estaria ali só para se certificar de sua partida? Ou seria outra pessoa com o mesmo biótipo e vivendo sua própria vida? Ela não quis resposta e entrou no corredor, mostrando bilhete e documentos aos funcionários da companhia aérea. Enquanto caminhava no túnel que levava à aeronave, se virou para trás, mas só via pessoas que lhe acompanhariam na viagem.

Sentou-se em sua poltrona junto à janela, olhou para fora e as luzes do aeroporto eram embaralhadas pela garoa que formava gotículas na superfície transparente. Uma senhora de uns cinqüenta e poucos anos, com certeza em sua primeira viagem de avião, senta-se na poltrona oposta, na mesma fileira e está pálida, como a luz branca da aeronave. Sua respiração é difícil e o suor desmancha sua pesada maquiagem. Pouco depois senta-se ao seu lado uma mulher de uns vinte e cinco anos, mostrando ter muito, muito mais experiência de vida que a mãe apavorada, com um copo de água, procurando acalmar-lhe. Desvia o olhar, que já censurava o estilo de vida da filha da assustada mãe, ajusta o cinto, estica as pernas e volta novamente o olhar para o aeroporto. Os comissários de bordo fazem o procedimento padrão e a aeronave começa a se movimentar.

A chuva parece aumentar ou talvez a simples movimentação tenha transmitido esta impressão. A grande massa metálica já corre contra o vento, deixando as luzes do aeroporto obliquamente inclinadas e empanadas pela velocidade. Ela continua a olhar pela janela e o que vê é uma imensa camada de nuvens que por muito tempo permaneceriam ali, dando a impressão que o avião estava parado. Decidiu que sua atitude de não olhar para a tal figura foi a mais acertada, acalmando assim, sua inquieta alma. Algum tempo depois de observar as características das personalidades de alguns de seus acompanhantes, ela olhou para fora e já podia ver algumas estrelas. Estava sobre uma enorme massa de vapor de água que estava sobre uma enorme massa de água salgada e sob uma enorme massa de estrelas. Mais uma vez veio à sua mente o eterno estado de mudanças em que havia penetrado. Haveria de mudar novamente até os ossos e continuar seguindo a ser a mesma pessoa? Fechou os olhos, dormiu e sonhou que estava caminhando entre ciprestes, em cidades medievais, conversando com velhos que lembravam seu avô.

Livro: Viagem à Itália: 1786 – 1788
Título original: Italienische Reise
Autor: Johann Wolfgang von Goethe
Tradução: Sérgio Tellaroli
Ed. Companhia das Letras – São Paulo - 1999